VIOLA | Histórias que José Sussuarana contava *(Elton Becker)

“O violeiro”, de Jose Ferraz de Almeida Júnior (1850–1899), pintor, projetista e professor brasileiro.

Os meninos não se dobravam. Ao pai chamavam, pediam, imploravam, aquela história, a da moça dos doces. “Canta, pai, canta, pai, com a viola, com a viola”. E José Sussuarana se rendia e dava o começo da lapinha. Não sem antes advertir: se tagarelar, se não ficar calado, quieto, diante da história, ou se dormir aquando da história, não tem mas nem meio mas, vai direto para a cama, os dois, sem calundu. E nem precisava daquele á-bê-cê para aqueles dois ouvintes miúdos, José Sussuarana não conhecia cansaço. O pai repetia as mesmas histórias, contava mais uma, sempre com aquele seu sorriso de avô de gravura dos livros de história. E as suas histórias eram as suas histórias, ninguém sabia cantar e contar como José Sussuarana. Havia uma nota especial nas modulações de sua voz e uma expressão de humanidade nos reis e nas rainhas dos seus cantos. Era tudo diferente, mais bondadoso e mais cruento que as histórias que outros contavam. E José Sussuarana principiava a história já sabida, ponteada na viola:

Tropeiro fala de burro,
vaqueiro fala de boi,
jovem fala de namoro,
os véio fala do que foi.

Quem é? É o violeiro.
E o que quer? Um dinheiro.
Pode entrar, eu vou buscar
Lá no quarto o seu dinheiro
Bem debaixo do cabeceiro.

Tropeiro fala de burro,
Vaqueiro fala de boi,
Jovem fala de namoro,
Os véio fala do que foi.

Lá detrás daquela serra
Passa boi, passa boiada
Passa boi manso e boi brabo
Também passa moreninha
Linda do cabelo cacheado

Tropeiro fala de burro,
Vaqueiro fala de boi,
Jovem fala de namoro,
Os véio fala do que foi.

Quem foi a Portugal, saiu do curral
Quem foi ao Brasil, fez que não viu
Quem foi a Cotia, perdeu a tia
Quem foi ao Sertão, caiu no baião
Quem foi em Conquista, perdeu a crista

Tropeiro fala de burro,
Vaqueiro fala de boi,
Jovem fala de namoro,
Os véio fala do que foi.

Bem detrás da nossa casa
Tem uma vaca varejeira
Quem rir ou falar primeiro
Come o bicho e a bicheira
Sem nenhuma choradeira

Tropeiro fala de burro,
Vaqueiro fala de boi,
Jovem fala de namoro,
Os véio fala do que foi.

E, assim, foi que uma vez, há muito, muito tempos atrás, lá nas terras dos Gerais, de onde os seus avós vieram, havia um pequeno reino de um rei mancebinho, pouco menos de ano do que eu e bem mais de ano que Josecarlinhos, e que vivia rodeado de gente em seu senhorio mas não tinha mulher, não tinha namorada. Todos os dias, o rei saía à tarde para passear, bem pouco antes da viração da tarde, para tomar um pouco de ar livre e ver como andavam as coisas e as pessoas da freguesia. Um dia, ao passar por uma praça no caminho de volta para o senhorio, o jovem rei avistou uma moça que vendia doces numa banca. A moça era tão linda que ele não conseguiria tirá-la jamais da cabeça e não haveria outro pensamento que não pensar na docista, mocinha de cabelo cacheado, morena de viva cor, como a doce vida, que nem Jeruza, que nem sua mãe…

Rei, capitão,
soldado, ladrão.
Moça bonita
do meu coração.

Moça bem pequena 
Da perna grossa.
Vestidim curto, 
êi, o pai não gosta.

Rei, capitão,
soldado, ladrão.
Moça bonita
do meu coração.

Moça bem pequena,
igualzim a botão.
Carrega o pai no bolso
e a mãe no coração.

Rei, capitão,
soldado, ladrão.
Moça bonita
do meu coração.

O rei, então, passou a sair do castelo todo santo dia e passar pela praça e dar de cara com a docista bem bonita. Não havia jeitos que fizessem o reizinho deixar de pensar na cunhã. E, passado mais de um mês nesta falta de sossego pouco astucioso e nesta situação tão difícil, o jovem rei percebeu que amava a moça docista e que com ela queria se casar. Mas, como agir com ela e como chegar ao seu coração? O rei perturbou-se ao imaginar que a docista poderia até se casar com ele, porém o que seria dele se ela não o amasse de verdade ou não o amasse o tanto quanto ele gostaria. Afinal, ele era o rei e a mocinha, fosse digna, era somente uma docista. O rei sentia horror, enfado, com tudo isto, pois tinha muitas mulheres e muitos homens no seu comando. Mandava a uma: “vai”, e ela ia, e a outro, “vem”, e ele vinha, e falava às servas “faça isto” e elas faziam e, com tanto poder, como saber se conseguiria conquistar o coração da docista bem pequena? E com tanto poder seria ele também capaz de amar a docista?

Rei, capitão,
soldado, ladrão.
Moça bonita
do meu coração.

O rei se consumia em buscar uma solução para o seu caso que todas as outras coisas passaram a ser menos interessantes ou descuidadas para ele que andava largado, sem comer e sem dormir direito, de esguelha, ardente, pelos cantos. E, finalmente, depois de alguns dias de penar, encontrou um caminho possível: usaria a vestimenta mais bonita e mais cara, a carroçada mais dourada e puxada pelos cavalos mais alazães e tudo acompanhado de fanfa, de banda, batendo o castelo com repiques, dobrados, e destacamento de guardas, fardamento em cima. Cerimonioso igual procissão de Nossa Senhora Sant’Anna ou Domingo de Ramos na Paixão e a diligência iria parar bem de frente à banca da docista com tapete bem vermelho e desenvolto. Na sequência, o rei lhe ofereceria o dote de rainha e as joias da coroa para impressioná-la. Tudo bem-acabado, bem-apanhado. Pouco depois de todo este plano, porém o rei se arrependeu. Não estava certo. Mal-afamado plano, porque se impressionar não é o mesmo que amar. Então, tlh daria tudo: a carroçada dourada, os cavalos, o destacamento, as joias, as roupas. A docista seria muito agradecida, demais. Só que gratidão, eterna gratidão, não é amor e o rei também desistiu deste plano.

Tique-taque
carambola
esse dentro
esse fora.

Papagai come o mi
Priquito leva a fama
Um canta e outro chora
Triste sina de quem ama

Tique-taque
carambola
esse dentro
esse fora

Chupei umbu docinho
O caroço joguei fora
Da casca fiz um barquinho
Pra levar o amor embora

Tique-taque
carambola
esse dentro
esse fora

Um dia, o rei moço ouviu dizer da história de Ivan Campanha e da magia da simpatia da samambaia. Vocês, os dois, sabem: a samambaia livra a casa dos raios, livra a casa do fogo, e também serve de socorro contra o veneno das cobras. Então, uma única vez no ano, à meia-noite do dia 23 para o dia 24 de junho, Dia de São João, o batizador e primo de Nosso Senhor, que o batizou com as águas do Rio Jordão.  Assim, a nossa gente antiga conta que, somente por alguns segundinhos, nasce uma maravilhosa flor de fogo de fogueira no meio da samambaia para desaparecer logo em seguida. Quem topar com a flor, todos os segredos e todos os tesouros do mundo vão ser conhecidos por esta pessoa, que vai abrir portas onde não há; abrir o que ninguém abre e ninguém fecha; e fechar e ninguém abrir. Não tem cadeado impossível no mundo inteiro. Quem achar a flor de samambaia, saibam, vai mandar nas pessoas, falar com os passarinhos e os bichos da terra e dos rios, até do mar, a enorme lagoa verde de sal; ficará invisível, poderá mesmo voar rápido como o gavião-real, uiraçu-verdadeiro, com toda a sorte de acrobacias no voo. Mas, nem tudo são flores, os meninos, somente o mais corajoso, sem ter medo de ter medo, pode sair atrás da flor de samambaia. Ela é protegida por bichos terríveis, ferozes, venenosos, unhas enormes e curvas, umas gafas. Os meninos assombravam-se, faziam uh, punham as mãos aos olhos, curvavam-se no colo… ensombrados com a história e a arte de dizer do pai.

Mas, isto não é pior de tudo, é nada. Quem quiser tomar a flor de samambaia, no duro, tem de passar por um molequezinho tão pequeno, de uma perna só, pulando pelos ares, pequeno de tamanho, gigante de mesquinho. O Saci-Pererê, o Matitaperê… ó, mais perverso e maltratador que o Romãozinho, amaldiçoado pela própria mãe, vocês sabem, aquele que sabe das coisas do céu e do inferno e não vai descansar nunca, enquanto existir um vivente na terra.

Era o menino Romão
à meia-noite medrada
em uma casa assombrada
com a faca na sua mão…

…passando manteiga no pão

Para chegar até lá, tem de passar pelo Saci travesso que cria ilusões com seus assovios agudos e impossíveis de serem achados, e desse jeito o cererê faz os procuradores se perderem nos caminhos. Às vezes, o menino malino é encarregado de um pé de vento, de um redemoinho, acreditem, e as pessoas saem correndo, passando adiante. Umas vezes, Matitaperê é só brincalhão; outras é danoso… Pois bem, mulheres e homens continuam procurando as flores de samambaia, mata à dentro, selvagens, à meia-noite, medrando à bruta na calaçaria das roças. E quem pega e rasga a flor, encanta, a boca seduz, o sorriso fica cativante, ardiloso e irresistível. Desencaminha e não tem essa ou esse que não sobra. Ele, o rei, adorava o moça dos doces e nada o seduzia mais do que a ideia de se tornar o seu amador. Porém, isto também não estava certo, ainda que sobrevivesse aos perigos da travessia, seria um ardiloso do mal recorrer às promessas e encantos da flor de samambaia. Uma coisa contra a justiça: Deus me livre e guarde. No mais, a sabedoria dos antigos diz que atrair o amor com engano é aliciar para o mau fim. E esse mal só dura sete anos. Logo, em pouco tempo, daria tudo errado e, aí, adeus, viola.

Pinto pelado
caiu do telhado,
perdeu uma perna, 
ficou aleijado.

Por derradeiro de tudo, o rei se decidiu que deveria chegar até a docista não menos aparatado e cheio de tantos bazulaques, mas vestido de mendigo, de choça humilde, e, como um igual a ela, conquistá-la mais hoje, mais amanhã, mais dia, menos dia. E assim se fez, o rei se rebuçou e se partiu até à banca da docista, nervoso e inseguro, o homem que detinha o poder sobre tudo naquele soberano estava em instantes de total fragilidade e nenhum poder sobre o coração da docista. O mesmo coração que possuía a liberdade de dizer sim ou de dizer não e de amar ou de não amar. De bem-me-quer ou mal-me-quer. Qual dos dois daria a margarida? Meio perturbado, chegou bem cedo e antes da docista, viu-a descerrar a banca de doces em modos, frases, com um sentido que a inteligência da gente não alcança, só murmura, e de longe. O rei ainda não se havia capacitado de que se descrevem perfeitamente as belezas das coisas nunca vistas.

Fui andando pelo camim
Viemo em três,
comigo quatro.
Subimo os três no morro,
comigo quatro.
Encontramo três burros,
comigo quatro.

Nesta horinha da fábula, José Sussuarana fazia um teatro dramático, uma pausa não preenchida e trazia a viola bem acorde com as vastas harmonias das serras e dos descampados e dos sertões… “O rei se fez de mendigo e pedinte para chegar até o coração da moça bem bonita dos doces… E o rei moço teve sucesso com seu plano? E eles viveram felizes para sempre?… Viveram como Deus com seus anjinhos? A moça docista virou rainha querida por todos, rica e feliz? Ninguém sabe… Isso depende inteiramente da coração da moça docista”.

E os meninos cantavam felizes:

Entrou pela perna do pato, 
saiu pela perna do pinto.
O rei mandou dizer 
que quem quiser 
que conte mais cinco…

Pedrinha rolou,
Pisquei pro reizinho,
Reizinho gostou.
Contei pra papai,
Papai nem ligou.
Contei pra mamãe,
Chinelo cantou.

Eu sou do sertão
E gosto das festa
Do meu São João.
Papai vai no bolso
Mamãe no coração.
De um e de outro
Eu trago lição.

Entrou pela perna do pato, 
Saiu pela perna do pinto.
O rei mandou dizer 
Que quem quiser
Que conte até cinco:
Um, dois, três,
Quatro, cinco.

Subi num pé de pau
E desci foi pelas rama, 
Jeruza, Carlinhos, eu pego
E levo agora… já pra cama…

— Para Petrônio Joab, violeiro e pai de Stella e Heitor; meninos que inspiraram estas histórias.

| * Elton Becker, dentre múltiplas atribuições profissionais e intelectuais, é também radialista, historiador e Dr. em Cultura.


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