HOMENAGEM | A luta de um guerreiro contra a covid-19 (Solange Anatólio)*

Por Solange Anatólio* – Quando entrei na Faculdade de Direito, em 1985, conheci uma irmã do meu coração. Del. Desde aquele tempo nunca mais nos separamos e a nossa identidade é tão grande que somos colegas do Ministério Público.

Eu tenho tanto amor e gratidão a ela, inclusive por sua família, que não saberia descrever a extensão.
Del, era recém casada à época e me acolheu no lar dela. Lá eu fazia refeições e estudávamos.

Aproximadamente entre os anos de 1985 a 1988, não me lembro ao certo, Artime mudou-se de Feira de Santana,  a terra natal deles, para estudar em SSA.

Passamos os dois a dividir um simples e pequeno apartamento no Parque São Brás no bairro da Federação.

Ao chegar da faculdade para o almoço a cena que eu via era sempre a mesma. O jovem alto, magro, de óculos e sempre sem camisa debruçado sobre os livros na mesa da sala. Almoçávamos e cada um de nós se sentava  para estudar. Depois de Del, ganhei um novo irmão e é sobre ele que vou falar. 

Mesmo distante fisicamente, acompanhei, por quase 90 dias, a luta de Artime após o contágio com a COVID-19.

Compartilho agora, com vocês, meu pequeno diário de sua luta contra esse poderoso e invisível inimigo.

No início de março a COVID ainda era para os brasileiros uma realidade distante, até diziam que o nosso clima tropical não daria margem à sobrevivência do vírus.

E nesse período foi que surgiram em Artime seus primeiros sintomas. Após sentir fortes dores pelo corpo começou o que chamo a LUTA DE UM GUERREIRO CONTRA A COVID.

Em 7 de março Artime foi ao Hospital, de onde saiu com o diagnóstico de “virose inespecífica”.

Retornou para a emergência do mesmo Hospital no dia 09 e lhe disseram que ele tinha sinusite.

No dia 13, ao retornar no hospital, ele já foi para a UTI (era tudo muito novo ainda para os médicos, os quais, mesmo extremamente preparados, ainda não tinham noção do que estava por vir. Se não me engano ele foi o primeiro caso a chegar no Hospital).

Já na UTI o diagnosticaram como portador de pneumonia bacteriana. Com o quadro se agravando, até porque não se pensava ainda na hipótese de que Artime pudesse estar infectado com o vírus, pelo fato de que, até ali, não se sabia da hipótese da transmissão comunitária, o seu tratamento foi naquele sentido. A dúvida se dava também porque Artime não havia chegado de nenhuma viagem internacional, nem havia mantido contato com pessoas vindas de países com a pandemia. 

Por insistência da esposa dele, fizeram nele o exame de sangue e ela pessoalmente o encaminhou para o Setor de Virologia da UFBA. Resultado dado veio a bombástica informação da contaminação de Artime pelo vírus.

E a partir dali começou sua via crucis.  Dele e de sua família.

A cada boletim recebido o irmão médico o repassava para a família. Todos os dias eram dois e … fazia áudios com o resumo.

Como família que sou, pela escolha do amor, eu também recebia as mensagens. Com o tempo eu já pressentia pelo timbre de voz dele qdo as notícias seriam não boas. E isso me afligia.

Durante esses quase três meses eu o ouvia falar em “retenção de gás carbônico, disfunção renal, baixa taxa de oxigênio, entubação, processos inflamatórios” (que iam e viam) de forma constante, sedação, respirador artificial.

Durante o mês de março as notícias se alternavam entre esperança e desesperança, entre melhoras e agravamento do quadro, entre progressões e regressões.

Um dia, ao ouvir um dos áudios, eu me prostrei no chão de joelhos e chorei. Não tinha sequer condições de responder com uma palavra de ânimo, como eu sempre fazia.

Nada. Nesse dia só fiz chorar de forma copiosa e pedir a Deus que dividisse a dor que minha amiga estava sentindo comigo.

Eu usei uma estratégia nas minhas orações. Congelei a imagem de Artime que ficou gravada na minha mente desde 1988 e através dessa imagem eu vibrava a Deus que levasse as minhas orações até ele.

No dia 13 de abril, um mês após ele estar na UTI, veio uma boa notícia. Os médicos aventaram a possibilidade dele sair da UTI da COVID, e ir para a GERAL, retirar o tubo.

Enfim, entre os dias 14 e 19 de abril, ele apresentou uma melhora no seu quadro.

No entanto, no dia 19 daquele mês uma regressão no quadro o fez voltar à ventilação total, diálise e ele apresentou arritmia.

E, assim, foram se passando os demais dias de abril com notícias que em determinado momento me fizeram perder a esperança naquela luta desigual, de um paciente versus um inimigo invisível, que não dava trégua. Em questão de um dia todo prognóstico médico era quase destruído sem a menor parcimônia.

Me lembro que no dia 28 de abril foi quando mais sofri ao ouvir o boletim médico.

Somente a partir de 09 de maio ele começou a interagir por gestos, já que não falava, em virtude da traqueostomia. No dia 13, há um mês, o milagre começou a dar sinal de que poderia acontecer. (ele não estava mais febril e nem usava o respirador artificial). Por conta da amnésia decorrente de tanto tempo sedado, ao falar perguntou onde estava.

No seu aniversário, 15 de maio, quando completou 51 anos, pediu um bolo para a equipe.
No dia 16 começou a pensar em planos e perguntou sobre a viagem que ele faria com a esposa para o Peru. Foi quando soube o que estava se passando no mundo.

No grande dia 17 ele finalmente saiu da UTI para o quarto onde uma equipe multidisciplinar (fonoaudiólogos, fisioterapeutas e outros profissionais) o prepararia para se readaptar ao mundo e sair do hospital.

No dia 29 de maio, apesar de ter a alta hospitalar, teve que aguardar os trâmites burocráticos do HomeCare, indispensável na sua readaptação ao mundo do qual teve que se recolher por quase três meses para lutar por sua vida.

Sua saída do hospital foi em grande estilo. Festas e homenagens de todos que dele cuidaram e o amam. No seu prédio, alegria e faixas de boas vindas. Nos corações, emoção e gratidão a Deus.

Com Artime veio também a felicidade para todos os familiares e amigos que muito sofreram nessa sua longa e dolorosa jornada, mas que nunca desistiram de acreditar. 

E é essa alegria que me preenche que me fez escrever esse texto que agora compartilho (com concordância de Del e da família). 

Aliás, nem o farei famoso, pois ele já é. Artime virou estrela de TV e muitas reportagens sobre sua vitória foram veiculadas.

Mas para mim tudo isso me trouxe uma grande lição. Qualquer um de nós pode ser vítima desse vírus e necessitar de apoio e compaixão.

Somente assim podemos vencer a doença que ele nos causa.

De minha parte, meu olhar para todos que padecem com ela é de amor e solidariedade, sejam pessoas conhecidas ou não. O vírus pode ser vencido – eu sei disso – mas a dor trazida por nossa indiferença ou preconceito não. 

Vamos então nos unir numa só oração porque assim nosso apelo chega até a porta do céus. Que Deus ajude a todos nós.

Vida longa Artime! Deus abençoe a você e à sua família.

Deus abençoe infinitamente a vida de minha amiga/irmã Del e que suas dores sejam cicatrizadas.

Porque apenas Deus é por nós e perante Ele somos todos iguais (fazemos planos por ousadia). Saúde a todos vocês, familiares e amigos e que possamos tirar da vida as melhores lições. |

* Solange Anatólio é promotora de Justiça do Estado da Bahia.


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