Quem fez pré-vestibular nos cursinhos mais disputados de Salvador entre os anos 1980 e 2010 tem grandes chances de ter sido aluno desta figura que é Fernando Eleodoro, professor de língua portuguesa que marcou algumas gerações. Basta perguntar a alguém que foi seu aluno, que, muito provavelmente, terá alguma história para contar ou vai se lembrar de algum caso divertido em sala de aula que ele tenha contado.
O Livro
Como bem diz o jornalista Marcos Navarro no prefácio, o livro tem “cheiro de mato” e deve ser “degustado com calma, longe do tumulto digital do que se tornou a vida cotidiana”. Os Colares de Vó Docéu conta a história de duas famílias bem diferentes em suas origens que acabam se encontrando por causa de um casamento entre dois personagens de cada uma das famílias: Fátima e Vitorino.
Fátima é filha dos portugueses Alexandre e Docéu. O casal enriqueceu depois que Alexandre se tornou um grande empresário na Bahia. Por outro lado, Vitorino, filho de Zito e Sabina, é de origem muito simples, mas que, com esforço, conseguiu se formar em direito.
E, apesar de também serem muito diferentes um do outro, Alexandre e Zito – pais de Fátima e Vitorino – se tornam grandes amigos. Enquanto o primeiro é materialista e preocupado em acumular riqueza, o outro cultiva as relações humanas e as amizades, além de revelar uma grande preocupação social com os mais pobres.
Zito foi inspirado num taxista “de verdade” que tinha esse nome e eventualmente servia a Eleodoro: “Um dia, perguntei se ele tinha casa. Ele disse que tinha uma na Vasco da Gama, com dois quartinhos. E tinha uma outra perto de mim”, lembra-se o professor, que mora num condomínio em Lauro de Freitas.
Esperança
A surpresa veio em seguida, quando Eleodoro soube o fim daquela segunda casa que Zito tinha: “Ele alugava a casa para um homem e um dia, quando foi pegar o dinheiro do aluguel, descobriu que o inquilino tinha doze filhos. Então, me disse: ‘professor, esse homem precisava da casa mais que eu. Então, dei minha casa para ele”. Do episódio, Eleodoro guarda uma lição:
“Esse cara é que era gente. Ele era humano de verdade e eu quero pessoas assim, como Zito, que são bem melhores que nós.”
Fernando Eleodoro
•autor de Os Colares de Vó Docéu
O afeto é outra marca dos personagens do livro, com uma única exceção, que é Fátima. “Se a vida não tem afeto, não vale a pena”, sentencia Eleodoro. Mas Fátima, uma mulher amarga que não nutria amor – nem era amada – por ninguém, era ainda mais materialista que o pai e tudo o que desejava era tomar o lugar dele na presidência na empresa. Mas nem isso consegue: para a infelicidade dela, é a própria filha, Amália, que é preparada para ocupar o posto desejado pela mãe. Ao contrário de Fátima, ‘Lalinha’ é uma pessoa afetuosa, querida e bem resolvida profissionalmente.
Os Colares de Vó Docéu é também um manifesto a favor do perdão e da convivência entre as diferenças numa época em que a tal “polarização” tanto afasta amigos e familiares. Um exemplo disso é que Alexandre e Zito, mesmo com personalidades e ambições tão diferentes, se tornam amigos. “As pessoas que têm grandeza são assim. Não é todo capitalista que é filho da p… Acho que a humanidade é boa e tem jeito, com certeza absoluta”, diz o escritor.
E não se choque com o palavrão dito por um senhor de 80 anos e professor de língua portuguesa. Na boca – e no livro – de Eleodoro, nenhum palavrão soa agressivo, porque ele defende que esse vocabulário está na linguagem do povo e não tem nada de pornográfico. E este jornalista assegura isso, por experiência própria, tanto que, quando telefonou para o ex-professor para marcar a conversa sobre o livro, ouviu um “oi, seu vagabundo!”. E tenha certeza: ele diz isso com o afeto que tem de sobra pelas pessoas. || Por Roberto Midlej/Correio.
Livro: Os Colares de Vó Docéu/ Autor: Fernando Eleodoro/ Editora: Sendas Edições/ Preço: R$ 65 | 340 págs./ À venda: no site kotter.com.br.