Elton Becker * || José Benjamim, o Zébeja, aprendeu tocar sanfona desde menino novo com o pai e, como aquele, tinha talento e boa voz. O pai, Zé do Bahia, aconselhou que o rapaz já estava se firmando com voz de homem e já era hora de começar a se preparar para cantar nos bailes, “porque ninguém presta atenção em quem só toca”, asseverou. Só tinha um problema: Zébeja, nas palavras do pai, enfiava a cabeça na sanfona e, de cabeça baixa, “aí a voz não sai, fica fraca, ora”. E Zébeja treinou em casa o quanto pode e enquanto o carão do pai não lhe tirou a concentração e o ânimo.
A muito custo, conseguiu. O pai, então, lhe confiou um segredo: para facilitar a empreita, escolhesse uma moça bonita no meio do salão e mirasse nela, com jeito, para não alevantar mal juízo, virasse o piano de joelho pelo avesso e soltasse o canto para esquentar a graúna. Zébeja bem o fez. Abriu demasiadamente os olhos, escolheu a moça, acertou nos toques e cantou as coisas da vida e dos sertões. Muito ancho delas, ponteou.
Primeiro ficou orgulhoso depois assombrado. Tem coisas que afloram do chão, outras no coração da gente. Outras que brotam da vista e seguem o caminho peito. Alumiado pelo luar e pelas estrelas, no salão de baile, na verdade, um terreiro varrido e revestido de ramagens, de cepos e troncos com raríssimos tamboretes, Zébeja percebeu que cantava para dentro de alguém (e cantava quase uma cantiga de embalar, tão mansa de fazer dormir um sono solto). Mas este alguém era como flores em um arbusto de espinhos pontudos.
Cabelão cumprido, boa linha de cintura, rosto harmonia, pele macia sumaúma, recendia rosas, olhos luminosos e vivos, os seios laranja, total lindeza feminina, suave e vigorosa. Não era como outras moças em que se gabam as pernas ou os braços, mas aquela lindeza inteira e que não deixa outra razão de admirar partes. E melhor: não se via uma joia no seu corpo, nada, seu adorno era si mesma. Zébeja tirou pergunta de uns e de outros, soube que a moça se chamava Karolina com K e, contudo, deram como certo que a jovem era temida por seu temperamento e beleza incomuns.
Zébeja assombrado, timidez inata, ele não só temia, antes estava alegre. Pensou em se achegar na moça. Pensou em voltar. Pensou em se achegar. Pensou em voltar. No entanto, reuniu todas as forças que tinha e que não tinha. Falou com ela: “Você se importa de a gente se conhecer assim sem ninguém para apresentar nós dois?”, perguntou. “Não estou vendo ninguém por perto mesmo, então não me importo não”, respondeu a moça. E ambos se riram juntos. Pior para Zébeja. Karolina ria os dentes muito brancos, o prazer ria em sua boca e a vida começava ali para ele. “Você riu sustenido”, ele disse, e ela rindo risos francos, ele, entre o escancaro e o contido.
“José Benjamim? Está na hora! Fim de festa é igual fim de feira, se ajunta a tralha e toma o rumo de casa”, bateu palmas e gritou Zé do Bahia. No caminho, aconselhou o filho dizendo que “mulher é bom, mas não dá camisa a seu ninguém. Preciso é ter camisa primeiro para, só depois, pensar em mulher. Antes, carece de tomar tenência na vida, firmeza nos haveres”. O pai prosseguiu que o rapaz não ficasse triste não, que não era o caso. Que na vida da gente há umas cem mil vidas e tudo se ajeita, se conforma. Que no coração da gente cabe é coisa muito grande e muito variada.
Dia seguinte, mal despontava o sol e Zé do Bahia já tinha contado tudo para a mulher, dona Silivana. “Eles ontem deram chuva”, delatou. “Com este tempo nem sei o que vestir”, se limitou a dizer a mãe pensando consigo que era coisa que dá e passa. “Chaga de amor? Hum! Quem faz, sara”. O amor que mais resiste e que mais se sabe é o do dinheiro, assentiu o casal para incredulidade do filho. “Pai, que puxava umas tiranas tão bonitas na sanfona, com aquele palavreado?”.
No mais, o próprio Zébeja achava que ausência miudinha poderia até animar o amor que sentia, porém, como era difícil de ver a moça novamente, a coisa iria morrer antes de ter começado. Era tronco derribado, certeza. Só que não. Se há amor, tudo tem consolo; menos o pesar que causa. Adivinhando seus pensamentos, o pai disse que não se apoquentasse não. “São João tem todo ano, Zébeja. E o tempo vai tão rápido que a cinza da fogueira desse ano já vai topar com a do ano que vem”.
Aí, amor, a quanto obrigas? Dias sem comer, noites sem muito aprumo. Zébeja amava e o mundo estava no rosto da amada. Malvado Destino fez com que reencontrasse Karolina de novo e de novo e de novo, só que a moça passara da simpatia ao desdém com a mesma naturalidade do primeiro encontro. “Amor de sala de reboco ou de terreiro varrido fica enterrado na terra, Zébeja. O desengano da vista é ver e você viu no que ela é capaz”, aconselhou Zé do Bahia.
Zébeja desconcordou. Não é porque as coisas são difíceis que a gente não pode desafiar! Antes, não sabia tocar, agora já sabe; não sabia nem cantar e já dizem que está melhor que o pai. Coragem, então. “Beldade assim”, completa, “não é só bonita; é custoso de chegar nela”. Zébeja tinha de surpreender. Uma música não seria muito convincente porque ela ouviria uma vez só e pronto, talvez nem se lembrasse mais depois. Decidiu por uma carta cheinha de tantas provas que de amor lhe dava e em papel perfumado. “Vai ser mais que elogio, gentileza. Letra bem desenhadinha, coisa fina”, concluiu.
Enviou-lhe esta carta e ela disse que não. Karolina mandou dizer: sou passarinho que não aceita gaiola. Zébeja não acreditou e remeteu um cartão tipografado. “Deve de ser a letra agarranchada”. O amigo Maninho, versado na poesia e na fuxicação do amor, fez o letreiro das suas aflições. “Sei que o seu espírito acolhe com simpatia e amizade estas minhas tristezas, este mal indefinido que me persegue. Viver para mim não basta se teu amor não me satisfaz. Por ti sofre o meu coração. Ah, se vossemecê me desse a ventura do seu namoro, que amanhã eu morro. Mas, antes, quisera ir para o bom lugar do teu seio e viver contigo de amor”.
E Zébeja pediu, rogou de joelhos, suplicou pela Senhora da Conceição, pela Santa dos Impossíveis, mas ela disse que não. E disse não tantas vezes até que o ensinaram a Vó Xica, quimbanda de fama. Porém, nada feito e tudo falhou. Levou até a terra da marca que o pé de Karolina deixou no barro ruivo daqueles sertões, mas nada seguro. Ela disse que não. E Zébeja tomou-se por relapso, barbudo, sujo e descalço. Dona Silivana, sem acreditar no que via, tentava consolar.
“Namoro é ramo de souto, meu filho, vai um e vem outro. Sempre tem mais impasse que solução no amor, Benjamim. Eu, velha do jeito que estou, também já estive na flor da mocidade e a mais pura verdade é que não envelheci sorrindo, mas esse cabelo branco aqui me diz que amor, bem pregado, é coragens; mas você já deu no miolo todo, já bebeu até a última gota do caldo, e o que já ganhou com isso? Poeira e tristeza é o que a gente deixa atrás do rastro, meu filho. Mas é quando a gente anda de frente, que ninguém paga os tempos que a gente não viveu. Anda, alevante”.
Por muito pelejar de Dona Silivana nas conversas e nas contas do Rosário, nas novenas e até num Responso de Santo Antônio, aos poucos, o filho foi tornando à vida. Para Dona Silivana, perder um amor não era a coisa pior do mundo e, por claro, não se perdia o que não tinha. Nunca teve. “Na verdade, meu filho, amor é que atrapalha tudo, sabe? Amar, eu sei, é espora na ilharga, no lugar aonde a gente devia trazer um grosso e pesado facão, que é sempre muito precisado nesse sertão” — sabedorias de Dona Silivana.
Refeito, tocando e cantando como nunca, Zébeja estava no baile de Seu Januário e lá estava Karolina também contando às amigas e se divertindo com a história dele. Zébeja caprichou na sanfona. “Se aparecer um colega aqui, eu vou acolá, onde ela está”. Apareceu Anselmo, Zébeja passou-lhe a sanfona e pediu-lhe que tocasse aquela, daquele jeito. Dançou com ela. Voaram qual estrela riscando no céu, dama cara com cara com o cavaleiro. “Meu nome é José Benjamim, Karolina com K”, disse o sanfoneiro olhando para aquela linda flor do sertão baiano, linda como as histórias da carochinha, mas com o desdém do amor consagrado. Ele fitou Karolina nos olhos e bem nos olhos, bonitos como o veludo das lagartas verdes, olhos brilhantes, luz para os olhos de quem os olhasse de tão perto, conforto para alma.
E como já houvesse lágrimas nos olhos do sanfoneiro, Karolina sorriu afogueada para Zébeja e o mundo se ofereceu a ele desde sempre e para sempre. A Amada Amiga ali, ao seu alcance. O juízo de Zébeja abrasava e o coração tinha a evaporação de um forno. Não via mais nada com Karolina ali ao alcance da boca, e, como aquela cantiga que aprendeu na escola, naquela hora os céus se misturavam com a terra e o espírito de Deus voltava a se mover sobre a face das águas.
O sanfoneiro, com o sangue em alvoroço, se alegrou no pulsar apressado do seu coração, não ia mais triste com a tristeza discreta dos fatigados; ao contrário, esperava pelo não continuar da vida, o não-regresso da lua, o não-andar mais do sol e, baixinho lá dentro dele, chorava de amor o seu coração como quem se fecha numa gota e se afoga no fundo de si. Zébeja engarrafava brumas e corava de alegria sentindo o divino apetite da vida, sentindo o cheiro de Karolina, açucena-cheirosa, um cheiro diferente e xenhenhém.
Irresilível em sua amizade delicadeza, Zébeja pediu-lhe um beijo, por força de todo o coração. Karolina toda cestrosa sorriu de novo, sorriu de um sorriso luminoso e gaiato e a meninice brincou de novo nos olhos dela e Karolina fez que… Como se poderá dizer? Que terá feito ela? Aí, é só com Karolina.