POESIA | Acordar pra dentro: “Costumam dizer que, em dias frios, o melhor é dormir. Eu diria que o melhor é sonhar” (Marco Antonio Jardim)*

Que não insistam em interromper meu sono.
Não quero toques de alvorada, nem cessar qualquer luminosa quimera que eu possa ter.
Quando durmo, perco-me em encantamentos do mundo crepuscular.
Se já não tenho tantas fábulas quanto antes, menos ainda desejo despertar sobressaltado.
Levantar da cama, num rompante, é suplício privado.
Quando anoiteço místico, amanheço Índia, domino o espectro sobre o corpo.
E o que faz mexer minhas pálpebras é o sopro vital, sem me tirar do retiro espiritual.
É com música que melhor avivo meus sentimentos.
Por tais acordes, desadormeço afável, brando.
Impressiono os sentidos, dos ouvidos às vias do coração, abraçado aos travesseiros.
Suplico, entorpecido, uma graça extraordinária, sem esforço nenhum pra conseguir.
Acordo pra dentro de mim, sem a espera do porvir.
O que movo comigo no arrebatamento do sono é o sonho, o destino à quietude do cais.
Um encontro com velhos amores, um beijo suave, um êxtase, afagos angelicais.
Da reza cantada nas noites profundas às abstrações do pensamento, no espertar só assento o preguiçoso clarão do bocejo.
Esqueço nome, alcunha, estado, menos as estrelas que ainda antevejo.
Da fresta da janela ao fio do olhar de lampejo, tudo é matéria de sonho: entardecer, escurecer.
Inspirado e expirando, numa inalterada calma, o próprio sussurro do mundo vem retido no ocaso de minha alma.
No sono de cá, sem trepidações, até meus desejos adormecem em canções de ninar.
Pois que não insistam em me acordar para esta aurora passageira.
Ainda é cedo, façam-me este favor.
Sem bússolas, sem despertador, sem guia.
Neste estado de consciência interior, sigo onírico no vislumbre do dia.

Marco Antonio Jardim é formado em História, empresário da área de publicidade com a agência vOceve Multicomunicação, assessor de imprensa, diretor de conteúdo e marketing digital, escritor e poeta.


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