LUZ DA FÉ || Espiritismo marca 150 anos da morte de Allan Kardec diante de “momento de transição”

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Hippolyte Léon Denizard Rivail, conhecido como Allan Kardec, foi o responsável pela publicação do pilar da filosofia que nasceu a partir da investigação científica de fenômenos chamados “mesas girantes”

Nas celebrações dos 150 anos da morte — ou desencarne, como creem os adeptos do espiritismo — do escritor francês Allan Kardec, considerado o pai da doutrina espírita, expoentes da crença afastam o médium João de Deus de suas fileiras, falam de acirramentos dos conflitos interpessoais da atualidade e reforçam a sinergia da filosofia com os avanços científicos.

Kardec, cujo nome de batismo é Hippolyte Léon Denizard Rivail, foi o responsável pela publicação do pentateuco espírita, conjunto de cinco obras literárias, pilar da filosofia que nasceu a partir da investigação científica de fenômenos chamados “mesas girantes”, motivo de inquietação na Europa no século 19.

— Ele pensou ter encontrado nas manifestações das mesas girantes evidências robustas da imortalidade da alma, por meio da identidade dos espíritos comunicantes — afirma Dora Incontri, jornalista, doutora em educação pela USP e considerada uma das maiores especialistas em Kardec do país.

Ainda no primeiro semestre deste ano, estão previstas as estreias de um documentário e de um filme a respeito do chamado codificador da doutrina espírita. Dora, com Karim Soumaïla, assina o roteiro de Em Busca de Kardec, o documentário.

— A filosofia que ele estabeleceu, que é o espiritismo, que ele (Kardec) não queria que fosse uma religião, foi construída em diálogo com espíritos — afirma.

Já o filme dramatizado é baseado na biografia escrita pelo jornalista Marcel Souto Maior, que mostra a trajetória do professor Rivail até transformar-se no “pai do espiritismo”.

Segundo Souto Maior, a obra de Kardec é estudada e colocada em prática hoje em cerca de 15 mil centros espíritas pelo país, tendo como máxima a frase cunhada como a essência da doutrina: “Fora da caridade não há salvação”.

— Ela (a obra) sustenta uma rede de solidariedade cada vez mais integrada e ativa. É muito atual e cada vez mobiliza mais gente em torno das lições que difundiu — diz ele.

Adriana Franciosi / Agencia RBS
O médium Chico Xavier foi um dos exponentes do espiritismo 
no Brasil. Imagem: Adriana Fraciosi. Ag. RBS

Souto Maior afirma ainda que em nenhum país o espiritismo de Kardec ganhou tantos adeptos quanto no Brasil. Um dos grandes responsáveis por isso foi o médium Chico Xavier (1910-2002). Além de ações de caridade, o mineiro ganhou fama ao psicografar milhares de cartas e publicar mais de 400 obras. Em 2010, segundo o Censo mais recente do IBGE, 3,8 milhões de pessoas se declararam seguidores da doutrina no Brasil. É o sexto com maior índice de Ensino Superior (31,5%) e a maior taxa de alfabetização (98,6%).

Nesse total, porém, não estão outras correntes reencarnacionistas existentes no Brasil, como o candomblé e a umbanda, das quais os kardecistas buscam se diferenciar. Tampouco estão incluídos aqueles que veem a doutrina como filosofia e não religião, ou que a seguem em paralelo com religiões como a católica.

Polêmica com médium


Os espíritas também vêm, desde o final de 2018, empregando esforços para explicar que o médium João de Deus, 77 anos, preso em Goiânia (GO) sob a suspeita de abuso sexual e outros crimes, não pode ser considerado um espírita.

— O próprio médium já se declarou não espírita. É preciso separar a pessoa da doutrina. Mesmo que ele fosse espírita, dentro das nossas imperfeições, podemos cometer erros, mas os ensinamentos apontam para seguir corretamente — diz Geraldo Campetti, vice-presidente da Federação Espírita do Brasil (FEB).

Ele diz que “segundo Kardec, uma coisa é ser médium, um instrumento entre o plano espiritual e o material, outra é o uso que se faz da mediunidade, que pode servir tanto ao bem quanto ao mal. Pode-se trabalhar pelo próximo ou por interesses particulares.

— É claro que é lamentável tudo o que aconteceu, é um alerta para que fiquemos cada vez mais vigilantes. O médium não é um espírito perfeito, pelo contrário, é um espírito bem endividado — completa Campetti.

Momento-chave

Na visão dos espíritas, o clima que prevalece na sociedade, de atrito entre as pessoas, tem relação com o que chamam de “momento de transição”, que é marcado por questionamentos de valores. Campetti avalia que “estamos vendo pessoas perturbadas querendo conturbar”, e pessoas embarcando em processos de precipitação de opinião, de tomada de atitude intempestiva, que acabam favorecendo a polarização e tencionando as relações.

— O espiritismo leva a mensagem de paz e de esperança, e somos convocados a agir. É um momento decisivo, crucial, com o recrudescimento dos enfrentamentos, e não há como ficar parado — diz. — Precisamos dar apoio para que as pessoas entendam o que é essencial na vida. A doutrina se prepara para um momento de regeneração, para dar uma base às pessoas para trabalharem por seu restabelecimento moral.

A doutrina espírita previu esse momento conturbado e assinalou a importância de seus seguidores se pautarem sempre pelas lições morais do evangelho, especialmente a prática da caridade

ANDRÉ TRIGUEIRO, JORNALISTA E UM DOS MAIORES PALESTRANTES SOBRE ESPIRITISMO NO BRASIL

Para o jornalista André Trigueiro, um dos palestrantes sobre espiritismo mais conhecidos do país, “para os espíritas, estaríamos deixando a categoria de mundo de provas e expiações — onde a dor e o sofrimento ainda predominam — para o mundo de regeneração — onde a evolução ética e moral determinariam vivências menos dolorosas do que as atuais”.

— O agravamento das tensões, no nível em que experimentamos hoje, costuma marcar de forma aguda esses períodos de transição. A doutrina espírita previu esse momento conturbado, e assinalou a importância de seus seguidores se pautarem sempre pelas lições morais do evangelho, especialmente a prática da caridade — afirma.

Os avanços científicos em torno das manipulações genéticas, do sequenciamento do DNA e também as novidades tecnológicas parecem não levar desconforto aos espíritas, mas, sim, entusiasmo, uma vez que a doutrina afirma se ancorar no respeito à ciência.

— O espírita, ao se considerar cientista, tem de ser amigo do avanço da ciência. Outra visão seria sociologicamente tentar entender se os espíritas são amigos da ciência, mas aí não seria uma postura filosófica — diz o professor da USP Alysson Mascaro. — Isso é postulado por Kardec: a ciência acima de tudo. É um postulado, inclusive, do iluminismo do século 18, aplicado nessa leitura de Kardec no século 19.

Trigueiro diz que “Kardec utilizou a metodologia científica para eliminar o risco de fraudes e mistificações”.

— A atualidade do espiritismo se manifesta pela lógica de seus postulados (de Kardec) que revelam as leis que regem a vida e o universo. É o que se convencionou chamar de fé raciocinada — afirma. — Assim, os princípios básicos da doutrina permanecem perenes na linha do tempo. || Conteúdo extraído de Gaúcha ZH


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