Radicada na capital federal há quase 13 anos, a jornalista e escritora soteropolitana Suzana Varjão, 66, volta à terra natal para o lançamento de dois livros autorais: Diário de uma Louca e Divagações. O evento acontecerá nesta quinta, a partir das 18h, no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA).
As obras fazem parte da série Histórias e, logo após os autógrafos, Suzana participará de um bate-papo com o público. Para complementar a noite, a cantora Verônica Ribeiro e o saxofonista Luciano Silva farão uma pequena apresentação musical com clássicos da MPB.
Jornalista de A TARDE durante 18 anos, dos quais mais de uma década à frente do Caderno 2+, Suzana diz que essa série é como um pranto travestido de chiste e lirismo, em que ela chora os desvios civilizatórios e descaminhos humanitários do País, por onde vagam errantes mais de 200 milhões de sombras.
Em 37 anos de jornalismo profissional, a autora já acumulou 28 prêmios de reportagem — a maioria pela defesa de direitos humanos no campo da comunicação de massa, temática de quatro de seus livros e dezenas de artigos. Suzana é ainda ensaísta, cronista, crítica de teatro. Diário de uma Louca e Divagações marcam a estreia dela na ficção.
Com narrativas originalmente postadas na coluna dominical Histórias, do site baiano Leiamais, alcançando, todas as semanas, o primeiro lugar no ranking dos textos mais lidos, a série acabou motivando a publicação dos dois volumes pela editora Caramurê.
De acordo com a autora, Diário de uma Louca situa-se na interface do jornalismo e da literatura. Literatura na forma, jornalismo no conteúdo, porque todos os acontecimentos registrados, por mais absurdos que pareçam, são verídicos.
Já Divagações, cujo subtítulo é Microcosmos – ou retratos brasileiros, reúne histórias curtas que refletem cotidianos de um país semicolonial com as disparidades, violências e opressões.
Suzana conversou com o Caderno 2+, via WhatsApp e e-mail, sobre literatura, insensatez humana, distinções entre ficção e não-ficção, jornalismo, próximos projetos, dentre outros temas.
Qual a diferença entre escrever ficção e não-ficção?
A liberdade de criar, de trabalhar as letras esteticamente, exercitar o diálogo entre conteúdo e forma. Qualquer narrativa está inevitavelmente impregnada de valores, visões de mundo, vivências. Mas na narrativa não-ficcional, como o jornalismo, o compromisso maior é com a exatidão dos fatos. Quem escreve precisa fazer um esforço para deixar o “outro” falar. Agir menos como autor e mais como mediador. Na ficção, essa “camisa de força” desaparece. É interessante você começar com essa pergunta porque a série traz essa discussão, destacando, propositalmente, meu rito de passagem do jornalismo para a ficção.
E como se dá esse rito?
É que o primeiro volume da série é um diário fictício, mas somente na forma, porque todos os acontecimentos nele registrados, por mais absurdos que possam parecer, são verídicos. Só que os fatos foram trabalhados esteticamente, recriados, e apresentados como simulacros. Está, pois, situado na interface do jornalismo e da ficção. Já Divagações é ficcional, mas, como toda narrativa do gênero, é baseado em experiências, crenças, lugares de fala. E o meu lugar de fala é o meu país. Em síntese, os acontecimentos do volume dois são inventados, mas apresentados como reais, num movimento quase inverso ao do volume um.
Com o que o leitor vai se deparar?
Com uma multiplicidade de sensações e possibilidades de leitura. O Diário… foi escrito durante as primeiras semanas da pandemia, no auge do desastre político-humanitário que atingiu o Brasil, e registra os acontecimentos desse período sombrio de nossa história, mas com muito humor, ironia e nonsense. É um manifesto contra a insensatez humana, mas construído como um divertido quebra-cabeças, com charadas e jogos de adivinhações baseados em fatos, sem que deles dependam para produzirem sentido, dando margem a variadas interpretações, a depender da carga mental de cada um. Há também muitas passagens existencialistas. E gotas de lirismo – em Divagações, sobretudo.
Por que você associa a série a um pranto?
Porque, apesar do chiste, do nonsense, da poesia com que revisito as narrativas, nelas eu choro o Brasil, os desvios civilizatórios, os descaminhos humanitários. No Diário… eu faço uma espécie de truque com espelhos: eu inverto a pretensa debilidade mental da protagonista para colocar o Brasil frente a frente com a própria insanidade. Insanidade construída a partir de um processo de manipulação extrema da razão coletiva, que banalizou o mal e deu vida ao fascismo no Brasil. Em Divagações, eu choro cotidianos de um país semicolonial, com suas disparidades, violências e opressões.
Esses são os dois primeiros livros da série Histórias. Virão outros? Eles têm uma linha editorial e filosófica?
Virão, sim. Não no mesmo formato, mas com a mesma pegada filosófica. Sou humanista. E minhas produções refletem, inevitavelmente, essa opção de pensar e agir no mundo. Isso, se eu tiver fôlego financeiro, claro, porque publicar livro no Brasil é uma tour de force.
Que tipo de insanidade vive a “louca” do livro?
A insanidade coletiva, porque a louca desse diário não tem nome, não tem face, não tem gênero definido. São milhões de sombras que vagam errantes por esse território árido de cidadania chamado Brasil. É uma louca que reúne múltiplas identidades e que, diante de um processo feroz de gaslighting, entra em conflito e tenta se negar, passa a negar tudo no que sempre acreditou, coisas como humanismo, cidadania, liberdade, respeito à diversidade.
É um pranto coletivo, então?
Sim, mas catalisado por uma personagem, porque apesar de representar uma coletividade, esse conflito é interno, mental. Aliás, uma personagem não, três, porque, para dar maior visibilidade a esse conflito, além da protagonista eu uso duas outras personagens que são, na verdade, os outros “eus” da protagonista, seus alter egos. São as âncoras internas da personagem principal que fazem de tudo para que ela não se perca completamente, para que ela ‘desista de desistir’ de seus ideais, de sua luta em prol de um mundo mais justo, mais humano, mais solidário.
Mas há interseções entre o conflito da personagem e da escritora?
Sim. Inevitavelmente. Há, inclusive, passagens bem autorais, dilemas mais íntimos, pessoais, como os registrados em forma de diálogos com um pássaro, a quem a protagonista confessa suas pequenas e grandes decepções. E vergonhas. Vergonha da raiva, da impotência, do medo da morte e dos homens.
O que te inspira?
A psique humana.
Quantos anos você esteve à frente do Caderno 2+?
São 37 anos de jornalismo, 18 dos quais em A TARDE, sendo que mais de dez como editora do Caderno 2+, uma das fases mais criativas de minha trajetória profissional. Aliás, a personagem do Diário… surgiu quando editava o Caderno 2, fruto de meu espanto ante a loucura coletiva da sociedade, que eu já vislumbrava. Mas somente agora consegui dar vida a essa personagem, por meio desse diário fictício, porque essa insanidade ficou bem mais visível, principalmente a partir de 2018.
O que quer a sua literatura?
Compreender o incompreensível: a marcha dos homens, seu flerte com o abismo.
Qual a sensação de poder lançar os livros em sua terra, sobretudo depois dessa peste virótica que nos paralisou por mais de dois anos?
De reencontro, resgate, aconchego. De volta ao útero sob as asas dos pequenos pintassilgos, os pássaros protetores contra as pragas.
Quais os próximos projetos? O que vem por aí?
Um romance, provavelmente. Antes de escrever Histórias, eu estava finalizando um – Cidades de Bolhas e Vãos – de enredo futurista, centrado num universo semidestruído por doenças e catástrofes ambientais. Aí veio a pandemia e me paralisou. Vi, como diria a irmã gêmea da louca do diário, que meu enredo estava “desperdiçando alvoroço” porque a vida estava “mais animada que a arte”. Agora, não sei o que fazer com esse material. Vou ter que repensá-lo. Mas é claro que vou reaproveitar algo dele, e será a primeira coisa que vou fazer depois de largar esses meus dois “filhos” no mundo. | A Tarde.