LENTES PERIGOSAS | Um debate sobre os riscos do indevido uso do reconhecimento facial

“Eu fiquei com bastante medo, porque há muito tempo que pego metrô e faço sempre a mesma rota. As câmeras sempre me filmaram e justamente naquele dia me confundiram. Eu comecei a pensar se era meu cabelo que estava grande, fiquei pensando até em uma forma de mudar a aparência, com medo de acontecer algo comigo”.

Esse depoimento é do Davi, jovem negro, assistente administrativo, que vive em Salvador. 

Nós contamos a história dele há alguns dias numa reportagem perturbadora. Davi foi identificado por uma câmera de segurança em uma estação de metrô na capital baiana. Foi abordado por policiais, mas foi liberado em seguida, já que constataram que ele é inocente.

O caso de Davi teve um final feliz. Mas, como podemos ver por seu depoimento, deixou marcas no rapaz, que até cogita mudar a aparência. 

O receio dele se justifica. Uma pesquisa da Rede de Observatórios de Segurança em cinco estados já mostrou que 90,5% dos presos por reconhecimento facial no Brasil eram negros. Um relatório produzido em 2019 pela Defensoria Pública baiana também mostrou que 98,8% dos presos em flagrante em Salvador são negros.

Usadas para vigilância, as tecnologias de reconhecimento facial reproduzem os vieses racistas da sociedade – por isso, seu uso em larga escala é muito preocupante. Tanto pela seletividade penal, quanto pelo fato de que fortalecem mecanismos de controle por parte do estado sem que haja um debate amplo com a sociedade sobre eles. 

Não são poucos os estragos que as novas tecnologias têm causado nas democracias em todo o mundo. E, tenha certeza, essa questão não passa apenas pelas duvidosas escolhas das grandes empresas privadas. Sim, precisamos debater o papel do Google, do Facebook e da Amazon e responsabilizar os bilionários. Mas também não podemos adiar mais o debate sobre como essas tecnologias operam com forte viés racial, contribuindo para uma política de encarceramento em massa que é parte da maior tragédia brasileira – o racismo estrutural.

Governadores, ministros, congressistas adoram louvar os mecanismos mais “modernos” de segurança: câmeras, reconhecimento facial, biometria. Mas, para além da propaganda, é urgente que a sociedade brasileira discuta sobre a privacidade e os direitos dos seus cidadãos. Afinal, a quem servem esses mecanismos de controle tão perversos e perigosos? | The Intercept Brazil


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