Em 1986, quando eu estava na 6ª Série do Curso Ginasial, o equivalente hoje ao 7º ano do Ensino Fundamental, durante uma aula de Educação Artística com a professora Isabel Figueira de Oliveira (Bel), ouvi, pela primeira vez, o “Hino à Conquista“, composição do professor e poeta Euclides Dantas e do maestro Francisco Antônio Vasconcelos escrita em 1932, segundo Mozart Tanajura em publicação ainda inédita.
E, logo no primeiro verso octossílabo, eu cravei olhos de pipoca, esbugalhados e explosivos, em minha colega Marli Ribeiro de Matos: “És e sempre serás meu palinuro / Ó pérola fulgente do sertão”. — Palinuro? Estás brincando! E, como qualquer aluno colegial, levado dos seiscentos diachos, fizemos uma enorme caçoada — como se dizia à época; hoje, seria dito resenha.
Antes, devo reconhecer, porém, que Palinuro ficou esquecido e somente, mais ou menos, em 1997-98, durante o curso de História da UESB, quando, incentivado pelo sociólogo Paulo Cézar Cerqueira Lisboa, me interessei por teoria social e esse interesse acabou me levando à obra “Utopia”, de Thomas More ou Tomas Morus (1478-1535), e, quem diria, novamente, a Palinuro, porque a referência ao navegador está logo no Livro Primeiro do escritor inglês.
Mas, ali, me parece, Palinuro é mencionado como um tipo de navegador descuidado. E não imagino ser esta a leitura de Euclides Dantas, entretanto. Ao contrário, imagino que Euclides, levado pela leitura dos livros III, V e VI de “Eneida”, do poeta romano Virgílio (70 a.C), sabia que Palinuro era piloto de Eneias em sua rota de fuga depois da Guerra de Troia e é, daí, penso eu, que Palinuro surge para o autor dos versos do nosso hino como figura poética de guia.
Para quem não conhece bem a narrativa, durante aquela viagem quando as naus do herói partiram da Sicília em direção à Itália, Vênus previu a morte de um dos homens de Eneias a fim de assegurar a vida dos demais. Assim, no meio da noite, em plena viagem, Palinuro é lançado ao mar com timão e tudo, enquanto contemplava as estrelas para se orientar na viagem.
O problema é que todos dormiam e, naquela nau, ninguém ouviu seus gritos de socorro! Depois, durante uma descida aos infernos, Eneias se encontra com Palinuro e é quando ficamos sabendo do seu trágico fim. Nesse meio tempo, Palinuro conta ao herói que, após a queda no mar, passou três dias e três noites nadando e foi parar na costa da Itália, onde foi morto por bárbaros locais que deixaram seu corpo abandonado sem sepultura.
Assim, depois de ouvir a narrativa, Eneias se compromete a lhe prestar honras fúnebres, purificar seus ossos e lhe garantir um túmulo, um culto solene e, ainda, a certeza de que o local de sua morte será lembrado para sempre com o seu nome (o atual cabo de Palinuro, na Província de Palermo, na Itália).
Além disto, a Sibila (entre os antigos, profetisa reveladora dos mistérios) prediz que ali, no lugar da morte de Palinuro, haveria prodígios sobrenaturais. Logo, Palinuro vai se tornando aquele que revela o caminho ao tempo em que também se torna referência desse caminho. Tanto assim, em 1882, o poeta português João Penha asseverava: “é fácil naufragar sem Palinuro”.
Mas, antes de João Penha, outro português, Francisco Álvares de Nóbrega, escrevera em 1804: “Palinuro Sagrado, oh, como absorto / Ao ver-vos fica o meu batel por certo! / Meu náufrago batel, que sábio e esperto / Vindes guiar da salvação ao porto”.
Em suas “Rimas”, Álvares de Nóbrega ainda menciona que, ao aproximar-se de Palinuro, dele “se apossa um divinal conforto”, porque, tal como a imagem de Deus, os ímpios se quebram diante deste encontro assim como os justos obtêm conforto e fortaleza.
Dito isto, cabe mencionar também que alguns estudiosos identificaram a figura de Palinuro à de Manfredo, o rei da Sicília, no Canto Terceiro do Inferno da “Divina Comédia” de Dante, mais propriamente no redil dos excomungados, como a representação de alguém cuja alma morta não pode descansar jamais.
E, demais, alguns comentaristas cristãos do século 19 viram em Palinuro a antecipação da narrativa do Sacrifício Pascal de Jesus Cristo, afinal, na predição do seu destino e, claro, no pedido que o personagem faz a Eneias, percebia-se o quanto “convém que morra um só homem pelo povo, e que não pereça toda a nação” (Jo 11,50) e, ainda ali, ressoaria o Salmo 58, 2: “Livrai-me, ó meu Deus, dos meus inimigos, defendei-me dos meus adversários”.
Sim, Euclides Dantas era um erudito. Vide o tipo de métrica e os adjetivos que usa para compor o “Hino à Conquista”. Maria Gamaliélia do Socorro Limeira Coutinho nos diz que Euclides ofereceu uma contribuição inestimável à cultura, à política, ao jornalismo e à educação de Conquista, notadamente na implantação da Escola Normal em 1952. E, para mais disso, Heleusa Figueira Câmara o destaca como orador, poeta, teatrólogo, compositor, biógrafo e rábula (ou seja, advogava sem possuir diploma).
Tanto assim é que Aníbal Viana, Mozart Tanajura e Ebeilde Araújo Pedreira Goulart acentuam o espírito de Euclides na fundação do Colégio Brasil e do Educandário Sertanejo e como diretor do Colégio Marcelino Mendes. Sabe-se que Euclides Abelardo de Souza Dantas nasceu em Salvador em 3 de outubro de 1888 e chegou a Conquista em 1909. Sabe-se que faleceu em 1943 em sua cidade natal, porém sem data definida pelas fontes consultadas.
Sabe-se, ainda, que tinha sólida formação e deixou uma obra por ser estudada e difundida. E, como diz meu amigo Márcio José Silveira Lima, o Caburé, continuando com meu périplo, com meu apelo de publicar as obras de quem escreveu capítulos importantes da nossa história, então que se comece a pensar nas comemorações dos 200 anos de Vitória da Conquista tornando públicas as obras e a trajetória de pessoas como Euclides Dantas.
Quem sabe uma nova edição de “Régis Pacheco: esboços biográficos”, escrito em 1940 por Euclides e atualizado por Humberto José Fonseca e Rui Herman de Araújo Medeiros em 1995? Quem sabe uma reedição física do “Hino à Conquista” com gravações e partituras para instrumentos diversos e destinada à execução e estudos musicológicos tanto para músicos profissionais quanto amadores? E ainda seria de bom alvitre incluir aí a memória do maestro João Omar de Carvalho Mello em seu trabalho de reconstituição (praticamente etnomusical) da melodia do hino que andava um tanto esquecida até 1999.
E que se destaque também a importância de professoras de piano como as irmãs Isabel Figueira de Oliveira e Vanilda Figueira de Oliveira Freitas sem as quais, talvez, o “Hino à Conquista” tivesse se perdido.
E, finalmente, que se lembre, pois, que Euclides Dantas legou aos pósteros o seu amor à Conquista e o seu amor aos clássicos, isto é, a emoção que vibrava em seu peito por esta querida terra sertaneja e o seu paradigma de beleza. O colégio que leva o seu nome é parte essencial da história e da educação de Vitória da Conquista e demais é com a sua lírica que veneramos o nosso contentamento de conquistenses — monumento que nos legou. Nada mais justo e profícuo que celebrar sua memória. | * Elton Becker, dentre múltiplas atribuições profissionais e intelectuais, é também radialista, historiador e Dr. em Cultura.