VITÓRIA
Araújo, protagonista do maior embate recente na cultura nacional
O escritor Paulo Cesar de Araújo, de 53 anos, baiano de Vitória da Conquista, é um dos protagonistas do maior embate recente da cultura brasileira. Em 2006 ele lançou “Roberto Carlos em Detalhes”, primeira biografia do cantor mais popular do Brasil. A obra não contava com a autorização do Rei. Ameaçado de prisão por Roberto por infligir o direito à privacidade do músico, Araújo foi forçado a assinar um acordo judicial que retirou a biografia das livrarias.
“Caetano (à dir.) e Gil me decepcionaram mais do que o Roberto”
Agora, com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que eliminou a necessidade de autorização prévia para a publicação de trabalhos biográficos, Araújo planeja lançar um novo livro sobre o artista. Nessa conversa com ISTOÉ, esse baiano de coração, mas paulista de nascença, fala sobre sua nova obra, a decepção que sentiu com figuras da MPB como Gil e Caetano e sobre sua relação com o Rei, de quem ele garante não guardar mágoas.
“Roberto acredita que eu cometi um furto ao me apropriar da história dele,
mas não compreende que ele é apenas um tema, assim
como ele usa Jesus como tema de suas canções”
ISTOÉ – O sr. nunca fala de Roberto com ressentimento. Como fica a admiração por ele depois de toda a batalha entre vocês?
Paulo Cesar de Araújo – Minha admiração pelo Roberto vem da infância, aquela admiração mais genuína e sincera. Roberto era meu ídolo, eu cresci ouvindo as canções dele. Quando entrei na faculdade de comunicação social, comecei a pesquisar a música brasileira e, aos poucos, fui tentando me aproximar de Roberto. Tentei entrevistá-lo, mas não consegui. Entrevistei Caetano, Chico, Djavan, e não conseguia entrevistar o Rei. Ele nunca disse “não”, nunca disse que não iria me conceder uma entrevista. Mas os assessores dele sempre diziam que ele estava ocupado gravando, viajando, rezando. E assim se passaram quinze anos. Passei a compreender esse artista, suas limitações, suas contradições. Meu livro é minha versão sobre RC. Não me preocupei se ele ia gostar ou não. Não fiz o livro para ele, como um fã. Fiz porque identifiquei uma lacuna, o artista mais popular da música brasileira não havia sido tema de livro ainda.
ISTOÉ – É difícil separar o ídolo do censor?
Paulo Cesar de Araújo – Minha identificação com Roberto sempre foi através da música. Nunca tive maiores identificações com a pessoa dele. Por exemplo, ele é supersticioso, eu nunca fui. Ele é religioso, eu sou agnóstico. Ele é Vasco, eu sou Flamengo. Ele adora carros, eu nunca gostei de carros, nem sei dirigir. Esse episódio das biografias é apenas mais um momento em que eu e Roberto estamos em campos opostos. Eu sempre me identifiquei mais com Caetano, com a postura libertária dele e de Gil. Nesse sentido, Caetano e Gil me decepcionaram mais do que o Roberto (por também apoiarem as biografias autorizadas). Eu entendo o Roberto e, sinceramente, não tenho mágoas, só lamento o que aconteceu, por mim e por ele. Uma história tão linda como a dele não precisava de um capítulo desse.
ISTOÉ – A editora Record anunciou que irá publicar uma nova biografia de Roberto Carlos de sua autoria. Trata-se do relançamento de “Roberto Carlos em Detalhes”, livro retirado de circulação após um acordo entre o sr., o cantor e a Editora Planeta?
Paulo Cesar de Araújo – Não, vou lançar uma nova biografia. Eu estudo a MPB e a vida de RC desde 1990, por isso tenho muito material. Nunca deixei de pesquisar os dois temas, mesmo depois do lançamento de “Roberto Carlos em Detalhes”, em 2006. Todas as informações que colhi até hoje me permitem fazer mais de um livro sobre o Roberto. RC é uma das figuras mais importantes da música brasileira, que influenciou gerações de artistas. Só um livro sobre ele seria pouco. E muita coisa aconteceu desde 2006. Nessa nova biografia, vou incluir tudo o que ocorreu de lá para cá na vida do Rei, a campanha de Roberto contra as biografias não autorizadas, as músicas que ele lançou. Acabei de fechar esse acordo com a Record e ainda precisamos discutir os detalhes. Mas a ideia é essa: em 2016 vou lançar mais uma biografia do Roberto.
ISTOÉ – Na mesma semana do anúncio de seu novo livro, o empresário de Roberto Carlos, Dody Sirena, declarou que o músico lançará sua aguardada autobiografia, em comemoração a seus 75 anos, completados em abril de 2016. Como essa notícia afeta sua nova biografia?
Paulo Cesar de Araújo – Faço questão de esperar que a obra dele saia, pois pretendo usar a autobiografia de Roberto como mais uma fonte de pesquisa para o meu livro. Há mais de duas décadas o Brasil aguarda a autobiografia do Rei. Desde os anos 90 ele diz que vai lançar uma autobiografia e eu espero por esse momento ansiosamente. Acho importante que grandes personagens contem a sua versão dos fatos. Isso só enriquece a história do País e contribui para a nossa memória. O erro é querer que exista apenas a versão oficial, como o movimento “Procure Saber” (que reuniu figurões da MPB como Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil) desejava.
ISTOÉ – Como ficou a situação de “Roberto Carlos em Detalhes” após a decisão do STF?
Paulo Cesar de Araújo – A situação do livro ainda está indefinida. Ainda estou ouvindo minha advogada e juristas para saber como agir. O acordo judicial entre RC, a Editora Planeta e eu foi um caso tão singular que os próprios juristas não têm uma opinião definitiva sobre ele. Mas eu, de fato, não tenho pressa de resolver isso. Já me considero vitorioso pela decisão do STF. A derrubada da obrigatoriedade de autorização prévia para obras biográficas foi uma vitória de todos nós, da liberdade de expressão, da sociedade brasileira. O direito não é uma ciência exata, mas sim, interpretativa.
ISTOÉ – Como o sr. imagina que Roberto tenha reagido à decisão do STF?
Paulo Cesar de Araújo – Ele sempre foi muito enfático em relação à censura prévia de biografias e batalhou de forma violenta contra o meu livro. Inúmeras vezes ele disse que era dono da própria história e, por isso, só ele poderia escrevê-la. O Roberto acha que tem a posse da história, assim como tem a posse de um imóvel, um automóvel, um iate. Nós sabemos que a história é um patrimônio imaterial construído coletivamente, mas na cabeça dele, e estimulado pelos assessores que o cercam, ele acredita que a história é um patrimônio particular. O Roberto vive numa redoma de sucesso e poder. Ele não vive no nosso mundo do cotidiano. Ele recebe tudo filtrado dos assessores. E eu não sei se esses assessores passaram para o Roberto o que de fato aconteceu ali (no julgamento do STF). A tese dele perdeu de nove a zero. Se ele teve acesso ao que de fato aconteceu, não deve ter ficado feliz.
ISTOÉ – Em mais de uma ocasião, Roberto disse se opor ao fato de o biógrafo lucrar à custa de histórias pessoais. Como o sr. responde a essa alegação?
Paulo Cesar de Araújo – Roberto acredita que eu cometi um furto ao me apropriar da história dele, mas não parece compreender que ele é apenas tema de um livro, assim como ele usa Jesus como tema para algumas de suas canções. Para RC, Jesus é patrimônio coletivo, mas a história do próprio Roberto é particular. Ele também já chegou a dizer que os biógrafos se apropriam de uma história pronta, já escrita, como se não houvesse pesquisa, análise, seleção de fatos. Escrever biografia não é fácil. São anos de pesquisa, gasta-se muita sola de sapato. Roberto não tem ideia do que é o trabalho de um biógrafo. Parafraseando Djavan, só eu sei as esquinas que passei para escrever cada parágrafo de “Roberto Carlos em Detalhes”. Não conheço ninguém que sobreviva de fazer biografias. Viver de livro no Brasil é muito difícil. Pago as contas no fim do mês com meu salário de professor.
ISTOÉ – Como o sr. encarou o movimento “Procure Saber”?
Paulo Cesar de Araújo – O Brasil ficou surpreso e estupefato. Veja o caso do Caetano. Um libertário, um homem de vanguarda, uma das maiores inteligências da cultura brasileira. O cara que escreveu “Proibido Proibir” e que havia se manifestado contra a proibição do meu livro por RC. Como ele foi aderir a uma causa tão obscurantista e retrógrada como essa? Isso foi um choque. Ninguém sabia que dentro desses artistas, como Caetano, Chico e Gil, poderia haver um pensamento como esse, num momento de avanço da sociedade brasileira. Nos anos 70, quando a sociedade era mais conservadora, esses artistas se revelaram de vanguarda, contra a censura. E em pleno 2013 fazem isso? Roberto Carlos não surpreendeu porque já vinha fazendo isso. Já havia censurado outros livros e até processado jornalistas, como o Ruy Castro. E Chico? Chico chegou àquele ponto de me acusar de não ter feito entrevista com ele. A sociedade foi ouvir os argumentos desses artistas e encontrou um discurso vago, contraditório, sem pé nem cabeça, que só poderia dar no que deu: a implosão do “Procure Saber”. O grupo abandonou a causa das biografias não autorizadas quando viu que não teve o respaldo que eles esperavam.
ISTOÉ – O sr. acredita que a polêmica em torno do grupo “Procure Saber” contribuiu para a queda da obrigatoriedade de autorização prévia para biografias?
Paulo Cesar de Araújo – Sem dúvida. A lambança que foi a manifestação do “Procure Saber” trouxe benefícios para nós, biógrafos. Artista erra por se sentir o todo poderoso, por achar que todo mundo vai aplaudir tudo o que eles fizerem. Acho curioso eles não pensarem que o veto às biografias não autorizadas poderia se tornar um capítulo na própria história deles. Biografias futuras vão citar que a elite da MPB, em determinado momento, teve essa postura obscurantista.