O delegado Carlos Alberto da Cunha, 43, o Da Cunha, manteve por cerca de um ano e seis meses uma estrutura particular para filmar operações e divulgar vídeos na internet que, conforme investigação da Corregedoria, teve custo mensal de até R$ 14 mil. O salário médio dele na polícia tem sido de R$ 10.470 líquidos.
Os membros da equipe de filmagem não pertencem às forças de segurança do estado, mas ainda assim alguns deles dirigiram viaturas, tomaram depoimentos em ocorrências, usaram roupas semelhantes à de policiais e ostentaram armas nas redes sociais. Além disso, usaram unidades policiais como estúdio para edição de vídeos do delegado.
As informações estão no relatório de indiciamento de Da Cunha sob a suspeita de crime de peculato, documento em poder da Justiça e do Ministério Público de São Paulo, e foram reveladas pelo jornal Folha de S.Paulo.
O policial é suspeito de usar a estrutura da polícia para atrair “seguidores, visando prestígio pessoal e vantagem econômica em sobreposição aos interesses do Estado”. Também é suspeito de simular prisões para gravar vídeos.
Procurado pela Folha de S.Paulo, o delegado disse nesta terça-feira (28) que o jornal deturpa os fatos e veicula mentiras com o objetivo de prejudicar a imagem dele.
A investigação sobre a equipe particular do delegado, que é uma celebridade na internet (tem mais de 3,6 milhões de inscritos no YouTube), teve início após a polícia receber denúncia anônima de um suposto ex-colaborador.
O delator encaminhou um documento com uma série de dicas de irregularidades a serem investigadas pela Corregedoria, além de fotos com a atuação de parte dessa equipe.
A maioria das imagens envolve dois funcionários de Da Cunha: Gabriel Yoshi Siqueira Correia, conhecido como Gafanhoto, e Cristiano Pereira Novaes, também chamado de Cabelo. Nenhum dos dois é formalmente investigado no inquérito que apura suspeita de peculato.
As fotos mostram Correia dentro de viaturas, ostentando armas (entre elas um fuzil usado também por Da Cunha) e tomando depoimento em uma ocorrência policial. Um uma das imagens, está com o pé sobre a mesa da delegacia, enquanto verifica o conteúdo do celular.
Novaes está em menos imagens. Ele aparece dirigindo uma viatura da Polícia Civil, o que é proibido. Policiais ouvidos na investigação confirmam que Novaes conduzia o veículo.
Os policiais também afirmaram que era comum Da Cunha levar em viaturas oficiais os três funcionários particulares responsáveis por gravar vídeos de operações.
As irregularidades podem configurar, segundo policiais ouvidos pela reportagem, usurpação de função pública e violação de sigilo funcional. Além disso, reforçam a hipótese de crime de peculato, já que Da Cunha estaria usando a estrutura da Polícia Civil para fins particulares.
Os dois funcionários citados foram ouvidos pela Corregedoria e confirmaram a ligação com Da Cunha.
Gabriel Correia disse que foi contratado pelo delegado no início de 2019 para cuidar de redes sociais. Disse que acompanhava operações policiais, filmava as ações com o celular de Da Cunha e, depois, fazia as edições na própria unidade policial.
Disse que ganhava R$ 1.000 mensais para realizar esses serviços, prestados até meados de 2020. Afirmou também que, de vez em quando, era-lhe solicitado “o preenchimento da qualificação das partes envolvidas”.
Cristiano Novaes, por sua vez, disse que conheceu Da Cunha quando era motolink da TV Bandeirantes e Record. Passou a trabalhar com ele em 2018, também fazendo edições de vídeos para o YouTube. Ele admitiu que chegou dirigir a viatura uma vez.
Disse que continua trabalhando com o policial e ganha R$ 2.000 mensais.
“O declarante passou a exercer as funções de assistente pessoal do delegado Da Cunha, sendo seu motorista particular, bem como ainda realizando edições de vídeos e gravações feitas pela equipe do delegado, composta por James e Gabriel”, diz trecho do depoimento.
O terceiro integrante citado por Novaes é o cineasta James Jay Mass Salinas que, segundo disse, passou a prestar serviços ao delegado por R$ 1.500 ao dia. Ele afirmou que, inicialmente, filmava uma vez por mês as operações policiais, mas, depois, “chegou a efetuar quatro gravações em um mês”.
Os valores chegavam, assim, a R$ 6.000 mensais. Ele deixou a equipe em maio deste ano.
Por fim, os policiais da Corregedoria ouviram um quarto integrante da equipe, Alexandre Moreno, que não participava dos trabalhos de campo. Segundo ele, como sócio da empresa de marketing digital, prestou serviços para Da Cunha desde o início do ano passado, na administração das redes sociais.
Ainda segundo Moreno, ele ajuda na divulgação de vídeos de operações principalmente no Instagram e no Facebook, “que eram gravados, produzidos e editados pelo cineasta James”. Disse que em novembro de 2020, com fim da empresa, passou a trabalhar diretamente com Da Cunha. Tem um salário de R$ 6.000.
À Folha de S.Paulo, Moreno disse que deixou de trabalhar com o delegado. Também disse era apenas funcionário da empresa que trabalhava com marketing digital, e não sócio, como diz o documento da polícia.
Somando os valores mencionados pelos membros da equipe particular, Da Cunha chegou a desembolsar até R$ 14 mil ao mês para filmar e divulgar as operações policiais.
De acordo com o portal da Transparência do governo de São Paulo, o delegado teve nesse mesmo período (janeiro de 2020 a julho de 2021) um salário líquido mensal de R$ 10.470,61, em média -incluindo todos os benefícios, como 13º e adicional de férias.
Da Cunha foi afastado do cargo em julho deste ano, após uma série de investigações da polícia. Na sequência, pediu afastamento por dois anos sem salários e filiou-se ao MDB. Diz querer ser candidato a govenador de São Paulo.
A polícia de São Paulo apura, agora, a origem dos recursos do delegado para pagamento dessa equipe privada, já que o salário dele seria insuficiente. Segundo a investigação, Da Cunha gasta ainda cerca de R$ 9.000 mensais com aluguel e condomínio do apartamento em que mora.
Da Cunha também é alvo de inquérito do Ministério Público que apura possível enriquecimento ilícito. Para os promotores, o uso da estrutura estatal para proveito pessoal pode configurar improbidade administrativa. O delegado nega enriquecimento ilícito e já disse que até o IPVA está atrasado.
O delegado diz que não monetizava o conteúdo da internet até abril de 2021. Diz que tinha um bico de palestra sobre segurança de condomínios para empresa privada, da qual era sócio.
A polícia também investiga se o valor pago aos membros da equipe de filmagem era mesmo o que foi declarado por eles. Gabriel Correia, por exemplo, que afirmou receber R$ 1.000 mensais, tem Audi A3.
Em resposta enviada à Folha de S.Paulo, o delegado Da Cunha disse que a reportagem utiliza informações sigilosas e que buscam prejudicar a imagem dele.
“Como de costume, a matéria que será veiculada se vale de depoimentos prestados em inquérito que corre em segredo de justiça, bem como novamente deturpa os fatos com o único intuito de continuar a prejudicar a minha imagem.”
O delegado também afirma que busca medidas judiciais contra a Folha de S.Paulo. “As informações veiculadas na matéria são mentiras e de forma alguma condizem com a realidade. Já estamos tomando as medidas judiciais cabíveis quanto ao acesso indevido da Folha de S.Paulo aos autos.” | FOLHAPRESS.