CURIOSIDADE | Menor cidade da Bahia desde 1970 já teve segregação racial em cemitério

Você conhece alguém que mora em Catolândia? Então, saiba que você é privilegiado. Ou quase isso. Afinal, dos 14 milhões de baianos, apenas 3,4 mil moram no município localizado no Oeste baiano, a 856 quilômetros de distância de Salvador. Até para a reportagem, feita da capital baiana, não foi fácil encontrar alguém que mora lá. No entanto, graças aos nossos colegas da TV Oeste, emissora da rede Bahia sediada em Barreiras, moradores como a professora municipal Eslane Reis, 39 anos, nos contaram como é viver na menor cidade da Bahia desde 1970, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

“É uma paz. Aqui é sossegado até demais! É um lugar que você consegue dormir com portas e janelas abertas. Sem contar o clima que é fresco”, disse a professora. De fato, de acordo com os dados disponíveis no site da Secretaria de Segurança Pública da Bahia (SSP-BA), Catolândia não teve nenhuma morte violenta entre janeiro e abril de 2023. No ano de 2022, no mesmo período, foram registrados uma ocorrência por porte de drogas, um roubo em ônibus, um roubo de veículos e três estupros.  

Para dar conta dessa demanda, a cidade conta com uma delegacia que só funciona dia de sexta-feira e apenas dois policiais militares. “Quando tem alguma situação, eles levam para São Desidério, a cidade vizinha. Mas aqui é difícil ter alguma coisa desse tipo. A última morte violenta que teve foi há cinco anos, se não me engano”, lembrou Eslane. A Polícia Civil foi procurada para informar atualizações sobre os casos registrados pela SSP e não retornou até o fechamento do texto.

Mas as características de cidade pequena não são exclusivas da área da segurança pública. Na sede de Catolândia, existem apenas uma escola municipal, uma escola estadual, uma creche, um grande mercado, um posto de gasolina e duas farmácias. O mais curioso é que, para uma população tão pequena, não seria necessária a existência de dois cemitérios. Mas até pouco tempo, a cidade tinha uma espécie de segregação racial nos sepultamentos.

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Eslane Reis

“É até algo muito ruim de se falar, mas aqui tinha dois cemitérios: o dos brancos e o dos pretos. Havia um muro que separava o cemitério em dois. Mas há 3 anos, esse muro foi quebrado e hoje é só um. Cidade pequena tem dessas coisas, não é?”

Gilvan Pimentel, 55 anos, já foi vereador por quatro anos, vice-prefeito por oito anos e prefeito de Catolândia por também oito anos. Ele conta que foi na gestão dele que o cemitério foi unificado. “Nós todos somos iguais perante a Deus e isso estava muito feio para o lugar”, afirmou.

Ele também relatou a história que era contada para explicar o motivo da divisão do cemitério. “Dizem que uma vez um preto morreu e que era doença transmissível. Aí pediram ao dono do terreno para enterrar em tal lugar. Dias depois, morreu alguém branco e enterrou do outro lado. E aí começou a divisão. Branco de um lado e preto do outro. Ficou o mito”, disse.

O que sobrou do muro que dividia o cemitério em duas partes. Crédito: Arquivo pessoal

População de Catolândia já foi maior quando não era cidade

Desde o Censo de 1970, o primeiro realizado após Catolândia ser fundada, em 1962, o município se manteve como o menor da Bahia. Naquela época, foram calculados 1,9 mil habitantes, apenas. O número foi oscilando ao longo das décadas até que, em 2022, atingiu o ápice de 3,4 mil pessoas, número menor do que a população do bairro de Roma, em Salvador, que era de 3,6 mil pessoas em 2010. O IBGE ainda não divulgou dados de população dos bairros referentes ao Censo de 2022.

Em números oficiais, 3,4 mil habitantes é a maior população da história da cidade. Mas o ex-prefeito Gilvan Pimentel conta que Catolândia já foi muito maior do que isso. “Quando Catolândia foi emancipada, ela era maior que São Desidério. Mas depois, muitos distritos que eram de Catolândia foram para São Desidério”, disse. O próprio Pimentel nasceu no distrito de Riacho Grande, um dos que foram para São Desidério, segundo ele. “Quando eu nasci, ainda pertencia a Catolândia”, contou.

De fato, os registros dos censos de 1940, 1950 e 1960 confirmam a versão do ex-gestor. Na época, Catolândia era chamada de Catão e era apenas um distrito de Barreiras. Sua população era de 5,3 mil habitantes, em 1940, 6,3 mil em 1950 e 6,5 mil em 1960. Sempre maior do que São Desidério, que na época também era distrito de Barreiras e tinha apenas 3,2 mil habitantes, em 1960.

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Gilvan Pimentel

“Naquela época, quem sabia ler era doutor. E aí passaram a mão em Catolândia, que perdeu muitas comunidades por causa disso. Naquele tempo, nossa cidade tinha um comércio grande. Mas o prefeito de São Desidério era letrado, como diziam…”

Dos distritos que restaram em Catolândia, ele tem alguns nomes na ponta da língua: “Cabeceira, Areal, Tiririca, João Rodrigues, Boqueirão, Tamanduá, Lagoa do Simão, Arueira, Funil, Olho da Pedra, Água Branca, Capivara, Barra do São Marcos, Passagem de Pedra, Assentamento, Poção, Cabeceira do Sítio, Sítio da Barriguda, Barriguda, Lagoinha, Boa Vista, Barra do Poção, Ponta D’Água, Mozondó e ainda tem outros. Desses, o maior é Mozondó”, disse.

Quem escuta essa lista, pensa que se trata de uma cidade de grande território, apesar da pouca população. Mas não é bem assim. Catolândia tem uma área de apenas 703 quilômetros quadrados (km²), espremida por Angical (1,5 km²) e as gigantes Baianópolis (3,3 mil km²), Barreiras (8,1 mil km²) e a própria São Desidério, acusada de ter “passado a mão” em Catolândia e que ostenta 15,2 mil km², a segunda maior área da Bahia, atrás apenas de Formosa do Rio Preto.

Fuga para outras cidades

Segundo Paulo Roberto Baqueiro Grandão, geógrafo e professor da Universidade Federal do Oeste da Bahia (Ufob), essa proximidade com grandes cidades, principalmente Barreiras, considerada a capital do Oeste, é um dos motivos que dificultam o crescimento de Catolândia. “Ao longo das décadas, Barreiras ampliou a sua centralidade por causa da diversificação de suas funções urbanas”, disse.

Para se ter uma ideia, em 1970, a população de Barreiras era de 21 mil pessoas. Em 1991, esse número já tinha saltado para 93 mil. Hoje, quase 160 mil pessoas vivem na capital do Oeste. “Aqui mesmo em Barreiras conhecemos muita gente de Catolândia. Alguns que vão e voltam todo dia e outros se mudaram definitivamente. Isso até leva a gente a questionar se municípios como Catolândia teriam, de fato, a condição de ostentar esse status de cidade”, afirmou.

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Paulo Roberto Baqueiro Grandão

“Aqui mesmo em Barreiras conhecemos muita gente de Catolândia. Alguns que vão e voltam todo dia e outros se mudaram definitivamente. Isso até leva a gente a questionar se municípios como Catolândia teriam, de fato, a condição de ostentar esse status de cidade”

A migração de catolandianos é tão comum que, segundo o ex-prefeito Gilvan Pimentel, a campanha para a prefeitura se estende para os territórios das cidades vizinhas. “Uma cidade que não tem emprego, nem renda, a tendência é o povo procurar outro caminho. Em Barreiras, tem bairro que só tem gente que veio de Catolândia, que hoje tem mais eleitores do que população. A gente vai em Barreiras e Baianópolis fazer campanha. Temos que ir atrás do voto”, disse o gestor, que pretende se candidatar novamente em 2024.

De fato, Catolândia é uma das 23 cidades da Bahia que têm mais eleitores do que habitantes. Isso foi constatado em um levantamento do CORREIO, que cruzou os dados de população do censo com os dados de eleitores de dezembro de 2022 do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). São 3.930 eleitores na cidade, 496 a mais do que o número de habitantes calculados pelo IBGE.

Em 2010, ano do último censo realizado, Catolândia foi a única cidade da Bahia que apresentou o mesmo fenômeno. Na época, eram 3.193 eleitores registrados no TSE, 581 a mais do que os 2,6 mil habitantes. Assim como todas as cidades de menos de 15 mil habitantes, Catolândia tem um prefeito, um vice-prefeito e nove vereadores, que recebem de salário R$ 11 mil, R$ 5,5 mil e R$ 5,3 mil, respectivamente.

Dá para deixar de ser cidade?

Para o professor Paulo Baqueiro, foram cometidos exageros nos decretos que permitiram a emancipação de cidades como Catolândia. “Foi uma leva de emancipações que aconteceram na Bahia, no início dos anos 1960, devido a certas influências políticas. E acabou que foram cometidos exageros. Localidades que ganharam status de município sem precisar”, disse.

De acordo com o especialista, desde 2015, para um povoado se tornar cidade é preciso que haja uma definição por parte do Congresso Federal e sancionada pelo presidente. “Alguns critérios levados em conta são população, distância do povoado da sede do município e uma certa vida econômica autônoma”, explicou. No Brasil, os últimos municípios criados foram em 2013: Pescaria Brava (SC), Balneário Rincão (SC), Mojuí dos Campos (PA), Pinto Bandeira (RS) e Paraíso das Águas (MS).

Em 2019, o então governo Jair Bolsonaro anunciou uma proposta para exclusão de municípios com menos de 5 mil habitantes e com arrecadação própria menor do que 10% da receita total, como é o caso de Catolândia. A proposta não teve força e parou no Congresso, para a felicidade de Francisca Porto Rego da Silva, a dona Santinha, de 56 anos, que se diz apaixonada pela cidade.

Dona Santinha

“É um lugar calmo. Feito para quem gosta de paz. Aqui só tem agito nos dias de festa, como a do aniversário da cidade, que foi muito boa. Eu nasci aqui, sempre morei aqui e nunca pensei em me mudar. Já estou acostumada. Acho que não consigo acompanhar o pique de outra cidade”

Para dar um sentido de pertencimento, moradores se apegam a determinados símbolos da cidade, como o leite, principal alimento produzido nas fazendas de Catolândia. “O pessoal aqui gosta muito de criação de gado e Catolândia se destaca na produção de leite. É o nosso orgulho, pois faça muita seca ou chuva, a produção não diminui”, contou a professora Eslane Reis.

Jovens sonham em permanecer

Orgulhosos da cidade em que nasceram, alguns jovens sonham em permanecer em Catolândia. Algo que tem ajudado nisso é o ônibus municipal que faz transporte dos universitários para Barreiras. Quem entrou na faculdade, como o estudante de enfermagem Otavio Vilella, 19 anos, não precisa mais se mudar para conseguir estudar. “Vou e volto todo dia de ônibus. Saio 17h30 e chego meia-noite”, afirmou.

Apesar disso, Otavio admite que pode se mudar para Barreiras caso consiga um emprego na cidade. “Meu sonho é ser enfermeiro e trabalhar em Catolândia, mas enquanto estou estudando, preciso sobreviver. Estou tentando outras oportunidades, inclusive me Barreiras. Se eu conseguir, facilita para mim, pois alugo uma casa e já fico por lá”, disse.

Já Yris Ribeiro, 17 anos, quer fazer educação física e ser professora em Catolândia. “Por enquanto, eu pretendo me mudar para estudar, mas depois quero voltar e trabalhar aqui. O lugar mais perto que temos para ir é Barreiras”, considerou. Ela também reclama da falta e oportunidades de emprego na cidade.

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Yris Ribeiro

“Não tem muita coisa para a gente fazer aqui. É muito parado até para se divertir. Se não tiver emprego, vou ter que morar em outro lugar, pois não dá para ficar desempregada numa cidade pequena. É bastante ruim. Meus amigos também pensam assim. Vejo que todo mundo quer achar oportunidades em outras cidades. Além de Barreiras, tem muita gente que vai para Baianópolis, São Desidério e Luís Eduardo Magalhães”

Ambos os jovens também são unidos em reclamar da segregação racial que havia no cemitério. “Achava um absurdo, pois faz pouco tempo que derrubaram. Incomodava ter isso apesar do século em que estamos vivendo”, apontou Ribeiro. “Se somos iguais, por que dois cemitérios um ao lado do outro? A igualdade tem que servir a todos”, argumentou Otávio.

Giovanni Moreira, atual prefeito de Catolândia, foi procurado, mas não respondeu até o fechamento da reportagem.

População de Catolândia ao longo dos anos:

1940*: 5,3 mil habitantes

1950*: 6,3 mil habitantes

1960*: 6,5 mil habitantes

1970: 1,9 mil habitantes

1980: 3,2 mil habitantes

1991: 3,3 mil habitantes

2000: 3,1 mil habitantes

2010: 2,6 mil habitantes

2022: 3,4 mil habitantes

*Nesse período, Catolândia era chamada de Catão e era um distrito de Barreiras.

As cinco menores cidades da Bahia de acordo com o Censo de 2022:

1 – Catolândia: 3.434 habitantes

2 – Lajedinho: 3.527 habitantes

3 – Ibiquera: 3.725 habitantes

4 – Lajedão: 3.845 habitantes

5 – Lafaiete Coutinho: 4.075 habitantes

Matéria originalmente publica pelo Correio


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