CULTURA | A caminho de casa (Carlos Navarro Filho)

A amiga e colega jornalista Joana D’Arck lançou, na semana passada, o livro de contos “Entrelinhas e afetos”, com apresentação e prefácio de dois outros jornalistas e também amigos, Mônica Bichara e Emiliano José.

Empossado, também na semana passada, na Academia de Letras da Bahia, Emiliano destaca na autora a proeza de transformar e colorir com olhos mágicos um mundo prosaico, submerso e fantástico só revelado pela literatura. E diz que primeiro livro é ousadia da nudez no meio da rua, passo inicial da estrada a mostrar o quanto é preciso caminhar e aprender. 

De minha parte, lembro com alegria que o primeiro texto literário de Joaninha foi publicado aqui na coluna. O livro traz treze contos e deles escolhi esse. Você vai gostar. 

por Joana D’Arck

A Kombi verde e branca ia apinhada de gente e bagagens. Seguia pesada, levando o casal e os sete filhos que iam se juntar às suas três mais velhas na capital. O caminho parecia interminável, alongado pelo desconforto da falta de espaço.

Mais ainda pela ansiedade das crianças, os mais novos perguntando a cada momento se já estavam chegando. As crianças são assim, ansiosas, querem chegar logo para a novidade. E não se cansam de fazer perguntas. Também para ela, com um filho menor no colo, parecia uma eternidade vencer os 500 quilômetros até a capital, com os pensamentos e temores a lhe assaltar a mente. 

E se não desse certo? E se não conseguisse ganhar dinheiro na cidade grande e tivesse que voltar com o rabinho entre as pernas depois de tanto lutar contra a resistência do marido? E se…? Qual nada! Tem é que ter pensamento positivo, agarrar a coragem e seguir em frente. E esta grande ansiedade, meu Deus!

E a Kombi seguia apinhada de gente e de sonhos, dando paradas curtas de vez em quando pela estrada. O estômago roncando anunciava as horas, o meio dia chegando. O estômago tinha um relógio certeiro. Sem badaladas e tic-tac, mas um ronco de tremer as carnes do corpo. 

Treme o corpo todo quando a fome bate. Antes achava que isso era por causa dos produtos químicos que usava no salão de beleza, aquelas pastas de alisamentos que produzia, aquele amoníaco todo dos permanentes para fixar os cachos nos cabelos das clientes. Agora não lida mais com as químicas e a aflição para comer permanece, parece até coisa de doido. 

Quando o relógio do estômago anuncia a fome, fica possessa, num nervoso terrível se a comida não estiver pronta. Já teve vez de deixar panela cair com a tremedeira, de brigar com filho e marido de tão descontrolada com a fome. O relógio do estômago ronca alto.

Pausa para o almoço. Estendeu a toalha de mesa no banco traseiro, com as portas da Kombi abertas, enquanto as crianças corriam de um lado para o outro na beira da estrada. Tirou da sacola o que aprontou bem cedinho. E num só estalo a farofa com carne de sol foi devorada com gosto, entre goles do café levado no quente-frio. Depois do almoço, só mais duas paradinhas para o xixi. A Kombi prosseguiu pela estrada e só à tardinha desse dia intenso foi estacionada na porta da sua nova morada.

O apartamento de três quartos e mais um quartinho minúsculo da dependência para acomodar todo mundo era bem menor do que as amplas casas antigas de longos quintais em que viveu no interior. Mas se animou pensando que apesar de pequeno, o novo espaço foi todo mobiliado pelas filhas com tudo novinho em folha. A cozinha moderna com fogão a gás e geladeira só perdia em encantamento para a televisão, a primeira da família. A criançada arregalava os olhinhos diante do televisor que só viram antes nas casas dos amigos mais abastados. E nesse canto pequeno para os padrões das casas do interior, mas amplo como apartamento de cidade grande (como as filhas compararam), abriram-se os caminhos para muitos sonhos e planos, juntando de novo a sua família inteira. Nem imaginou que ali ainda caberia mais uma filha que chegaria mais tarde, trazida ainda bebê para passar uns dias, mas tal foi o encantamento que causou ao casal e filhos que ficou para sempre, com registro e tudo de filha legítima.

A Kombi verde e branca passou a percorrer o mesmo caminho, indo e voltando a cada 15 dias por muitos anos. Vinha apinhada de sacos de feijão, arroz, farinha, biscoito chimango, avoador, banana, melancia, laranja, abacaxi, abóbora, chuchu, mamão verde, carne de sol, requeijão…

Num certo dia, a Kombi ficou no interior, conduzida por outro motorista e transportando passageiros. Não voltaria mais carregada de sonhos e gostosuras. Foi trocada por um fusca todo paramentado, quando o seu antigo dono finalmente se aposentou do serviço de oficial de justiça no interior e pode se fixar na capital. | originalmente publicado em Bahia Notícias.


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