Por Cláudia Correia* – Nesse Abril Indígena um tema se destaca nos debates públicos: a saúde das comunidades indígenas. Segundo dados do último Censo Demográfico no Brasil, em 2010, havia 896,9 mil indígenas, sendo 63,8% na zona rural e 36,2% na urbana. Ao todo são 305 etnias que falam 274 idiomas diferentes.
A Bahia figurava como o terceiro estado em população indígena, somando 56.381 pessoas, depois do Amazonas 168.680 e Mato Grosso do Sul 73.295. Atualmente, segundo a Associação Nacional de Ação Indigenista-ANAÍ, são cerca de 30 grupos indígenas no estado e 70 territórios.
Desde a colonização portuguesa, as doenças foram uma ameaça à sobrevivência dessas populações. Relatos históricos registram o uso intencional de armas biológicas em disputas por territórios no Brasil. Doenças como sarampo, varíola, febre amarela e gripe dizimaram grande parte das tribos que existiam originalmente no país.
O antropólogo Darcy Ribeiro, no livro Os índios e a civilização relata a investida dos fazendeiros de cacau sobre as terras das tribos Kamacã e Pataxó, no sul da Bahia, no início dos anos 20, e as práticas de espalhar objetos contaminados com o vírus da varíola e envenenar as aguadas onde os indígenas circulavam.
No cenário atual o perfil epidemiológico dos povos indígenas registra altas taxas de doenças respiratórias, diarreicas, malária, tuberculose, cardiopatias, hemofilia, doenças renais, câncer e doenças imunopreveníveis. A inclusão das populações indígenas como um dos grupos prioritários para receber a vacina contra a Covid 19 se deve à vulnerabilidade social e a esse perfil.
Conforme levantamento da Articulação de Povos Indígenas do Brasil (APIB), apurado pelo Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena em março a população tradicional contava com 50.468 mil infectados e 1.001 mortos, incluindo 163 povos. Os Xavante, Kokama e Terena são os mais atingidos e Manaus e Boa Vista concentram o maior número de óbitos.
Segundo estudo realizado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (Famed/UFU) a chance de indígenas morrerem com quadro grave de Covid 19 é duas vezes maior do que a média geral.
Luta pelo direito à vacina
O Ministério da Saúde estimou que fossem imunizados 410.348 indígenas, já que o Plano Nacional de Imunização só prevê a vacinação de indígenas com 18 anos ou mais, atendidos pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) e residentes em áreas homologadas.
Mas, devido a determinação do Supremo Tribunal Federal – STF, divulgada em 16 de março, o governo federal está obrigado a vacinar todos os povos indígenas, os aldeados e os residentes em áreas não homologadas. Os grupos que residem em áreas urbanas também foram incluídos.
Esse é o caso dos cerca de 250 Kiriri do Cru, que vivem em Quijingue, Bahia. O conselheiro Jânio Cordeiro de Souza, filho do cacique Antônio José de Souza, afirma que o maior problema de saúde é a hipertensão arterial entre os idosos, mas nenhum caso de Covid foi registrado. Segundo ele, a rede de saúde local não tem unidade de saúde, hospital ou maternidade e a assistência é prestada por um médico que atende num posto de saúde em um povoado vizinho. “Aqui ainda não foi vacinado totalmente porque está sendo pelos critérios do Ministério da Saúde, não chega a dez pessoas idosas, pela faixa da idade. A gente está sendo vacinado pelo município, pela idade, não é direcionado a nós indígenas. Meu pai mesmo tem 75 anos, tomou a primeira dose, ia tomar a segunda, mas, eles adiaram, não sei porque”, declara.
Com o objetivo de solicitar a inclusão de alguns povos indígenas da Bahia como os Tupinambá (Eunápolis), Tumbalalá (Curaçá) e Katrimbó (Monte Santo) no Subsistema de Atenção à Saúde Indígena –SasiSUS, a ANAÍ no início de 2020, protocolou uma representação no Ministério Público Federal. O processo ainda tramita e no início de 2021, nova solicitação foi feita pela ANAÍ para a destinação de vacinas para os Kiriri do Cru e para os Katrimbó. A Secretaria Estadual de Saúde também foi acionada e assumiu parcialmente a demanda, segundo José Augusto Laranjeiras do Conselho Diretor da entidade.
Para a coordenadora do Grupo Temático de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva- Abrasco e pesquisadora da Fundação Osvaldo Crus-Fiocruz Ana Lúcia Pontes, “os direitos identitários dos povos indígenas não deveriam ser atrelados ao local de residência porque ele não define a identidade”. Ela enfatiza que o deslocamento de indígenas para o contexto urbano tem a ver com a violação de direitos, principalmente de seus territórios, ameaças e conflitos, busca de melhor qualidade de vida e dificuldade de acesso às políticas públicas em seus próprios territórios.
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Na comunidade Tuxá, em Rodelas, Bahia, a vacinação está fluindo, comparada a outras comunidades e não há resistência para receber a vacina, segundo a enfermeira Deysiane Tuxá, responsável técnica da Divisão de Atenção a Saúde Indígena -DIASI no Distrito Sanitário Especial Indígena da Bahia-DSEI. O povo Tuxá é assistido pelo DSEI através da equipe multidisciplinar, na unidade básica de saúde Indígena e fora da comunidade, na cidade, tem acesso aos serviços oferecidos pelo município, SAMU entre outros. Quando o caso exige os pacientes são regulados para Paulo Afonso, distante uma hora e meia de Rodelas, ou outras cidades conforme o sistema de regulação.
Dificuldades no combate à Covid
Na comunidade Pataxó de Coroa Vermelha, Santa Cruz de Cabrália, no extremo sul da Bahia, a vacinação atingiu até o dia 12 de março, 3.038 pessoas, 97% da população e em Porto Seguro 91% dos indígenas do município. A conselheira municipal de saúde do polo base de Porto Seguro Uhitwé Pataxó destaca as medidas de prevenção e o trabalho educativo na aldeia. “No momento a gente vem buscando ajuda para os equipamentos de proteção individual e também da divulgação nas comunidades sobre a Covid,” afirma. Sobre a rede assistencial para as comunidades ela informa que a cobertura básica é feita pelo subsistema de saúde indígena na atenção primária. Mas, o hospital em Santa Cruz Cabrália não tem leito de UTI e os casos graves são encaminhados para Feira de Santana, Salvador, Vitória da Conquista, Porto Seguro ou outras cidades. “É uma grande preocupação nossa como lideranças, já teve paciente nosso que teve de sair para outro município justamente porque não tem leito específico diante dessa grande concorrência com a Covid. Tivemos vários parentes internados, tiveram de fazer essas viagens, alguns óbitos também, o último óbito foi um tio meu, estava internado em Ilhéus. A rede funciona mas, precariamente diante de tanta demanda, funciona da maneira possível que está sendo oferecida” declara.
A resistência para receber a vacina acontece em algumas comunidades indígenas devido a informações falsas que são disseminadas sobre os efeitos do imunizante ou dúvidas sobre a sua eficácia.
Uhitwé Pataxó afirma que o alto índice de imunização na comunidade é fruto de muito trabalho conjunto para combater os boatos contra a vacina “ As fake news chegam com muita velocidade, com isso houve uma grande rejeição à vacina em Coroa Vermelha, mas, com muita luta já conseguimos essa percentagem de 97% vacinados, mas, em Porto Seguro tem muitas aldeias com resistência, buscamos mais divulgação para tirar essa imagem que eles tem. Nossa luta agora é buscar parcerias para fazer material de divulgação na mídia para ter uma adesão maior à vacina e tirar essa impressão que ficou com as fake news” , afirma.
Outra dificuldade encontrada é a distância da cidade para as aldeias em Porto Seguro onde as equipes realizam a vacinação e precisam cumprir o calendário definido para ampliar a cobertura. Com a rejeição à vacina o risco aumenta e o planejamento não é executado.
A Secretaria Estadual de Saúde divulgou dia 19 de abril que 18.902 indígenas (83%) foram vacinados pelo menos com a primeira dose e 17 mil(75%) receberam as duas doses. O órgão adota como referência o universo total de 22.669 indígenas, conforme consta no Plano de Vacinação contra a Covid 19 e informa que pretende concluir a imunização até julho.
O Distrito Sanitário Especial Indígena da Bahia (DSEI-Ba) foi procurado para esclarecer sobre o monitoramento da vacinação nas comunidades indígenas, mas, não retornou o contato até o fechamento dessa matéria. | (*) Assistente social, jornalista, mestre em Planejamento Urbano.