CONHEÇA A HISTÓRIA DA KUARUP | Gravadora de Elomar: “Elomar pediu um valor cinco vezes maior que o de mercado para liberar suas músicas, mas enfim acabou cedendo”

Era uma vez a “mais longeva” gravadora independente brasileira, chamada Kuarup, fundada em 1977, no Rio de Janeiro, pelo jornalista e produtor musical Mário de Aratanha. Incrivelmente, o selo continua funcionando em 2025, aos 48 anos de idade, quando a maioria das gravadoras virou fumaça ou se dedica a qualquer coisa mais que a lançar discos (ou álbuns, como se chamam agora que mal existem em formato físico).

A Kuarup continua em atividade até hoje porque em 2009, endividada em consequência desmaterialização do consumo musical, foi adquirida e transferida para São Paulo pelo jornalista Alcides Ferreira, então diretor de comunicação da Bovespa. Os dois donos da Kuarup, Aratanha e Ferreira, se uniram agora para contar juntos a história da gravadora, em trio com a também jornalista Adriana del Ré. O resultado é o livro Tocando em Frente – A História da Produtora Kuarup ou Como Sobreviver na Economia Criativa no Brasil, lançado pela editora… Kuarup.

O perigo da chapa-branca ronda, mas o inusitado encontro entre o ex e o atual kuarupeiros resulta num depoimento sincero, que não escamoteia os – muitos – percalços enfrentados em quase meio século de resistência. Eles não chegam a revelar os segredos da longevidade, mas deixam pistas e, pelo caminho, contam uma história com lances heróicos e muito amor pela música brasileira dita de raiz.

Tudo começou pelo sonho de Aratanha de gravar a íntegra dos Choros de Câmara de Heitor Villa-Lobos, transformados em LP em 1978 por uma confederação de instrumentistas que incluía Paulo Moura, Sérgio Assad, Noel Devos, Jessé Sadoc etc.

No segundo lançamento, no mesmo ano, os irmãos violonistas clássicos Sérgio e Odair Assad reuniram A Obra Completa para Violão Solo de Villa-Lobos; no terceiro, Chorando Baixinho (1979), o pianista erudito Arthur Moreira Lima confraternizou com ases históricos do choro como Abel Ferreira, Copinha, Joel Nascimento, Conjunto Época de Ouro e Zé da Velha.

O encontro erudito-popular de Chorando Baixinho marcou uma transição da própria Kuarup, que aos poucos se aproximou da chamada música popular brasileira, com foco voltado para artistas nordestinos como os baianos Elomar e Xangai, o pernambucano Geraldo Azevedo, o paraibano Vital Farias – todos estiveram juntos em dois volumes do projeto ao vivo Cantoria, lançados em 1984 e 1988, uma iniciativa bem-sucedida que em 1996 inspiraria a multinacional a iniciar a série O Grande Encontro, reunindo Geraldo Azevedo e os também nordestinos Alceu Valença, Zé Ramalho e Elba Ramalho.

Com olhos e ouvidos abertos para um Brasil que não é só Sudeste nem só litoral, a Kuarup tem contemplado artistas de Maranhão (Turíbio Santos), Pernambuco (Heraldo do Monte, Teca Calazans – essa nascida no Espírito Santo), Paraíba (Sivuca, Glória Gadelha, Quinteto da Paraíba), Minas Gerais (Dercio Marques, Zé Geraldo, Roberto Corrêa, Vander Lee), Paraná (grupo Viola Quebrada), Ceará (Waldonys), Tocantins (Juraildes da Cruz)… Não deixaram de ter vez músicos do Rio (Baden Powell, Raul de Barros, Monarco, Camerata Carioca, Henrique Cazes, Hamilton de Holanda) e São Paulo (Paulo Moura, Cristina Buarque, Rolando Boldrin, Cida Moreira, Passoca).

Nos anos 1990, um outro encontro abriu as portas da Kuarup para a chamada música caipira, quando o paulista Renato Teixeira reuniu-se à dupla paulista-mineira Pena Branca & Xavantinho no disco Ao Vivo em Tatuí (1992). A iniciativa então incomum de gravar não no eixo Rio-SP, mas na interiorana Tatuí fez escoar no mínimo 250 mil exemplares do disco, em plena crise que levaria o governo Collor à breca. É outra ideia que as multinacionais assimilaram com décadas de atraso, já neste século, quando passaram a gravar álbuns dos chamados sertanejos universitários em megashows realizados em cidades como Goiânia, Campo Grande, Manaus, Londrina etc.

Após um começo tipicamente carioca, a Kuarup voltou-se para o Nordeste e para o Brasil de dentro – o sucesso do disco de Renato Teixeira com Pena Branca & Xavantinho fez o selo se aprofundar no mundo da viola caipira, tendo à frente o violeiro, cantor e compositor mineiro Chico Lobo.

Sobrevivente de inúmeras temporadas de crise, Mário de Aratanha jogou a toalha quando o mp3 e em seguida o streaming dizimaram a circulação dos discos físicos, até então a fonte primária de renda para a Kuarup. “Chegamos a lançar mais de 200 discos até 2009, e somente a evaporação do suporte freou nossas atividades”, escreve Aratanha, no depoimento em primeira pessoa que compõe a primeira parte de Tocando em Frente. “Com a fragmentação em faixas soltas, perdemos o contato com o conceito” e “o conceito de curadoria, que me dava tanto prazer, dançou”, lamenta o produtor, ao relatar o processo de “autodissolução” da Kuarup.

Quando a casa já fechava as portas, surgiu Alcides Ferreira, que comprou a Kuarup pelo valor exato da dívida e assumiu sua gestão. “Joguei fora a algema de ouro”, justifica o jornalista de finanças no livro, referindo-se à Bolsa de Valores paulistana. Nos últimos 16 anos, a Kuarup de Ferreira começou reeditando lotes do material histórico da primeira Kuarup.

O novo dono conta no livro a canseira que tomou de Elomar: mesmo fazendeiro, o trovador de Vitória da Conquista torceu o nariz para a origem financista de Ferreira (“você é da Bolsa, né?”, perguntou no primeiro encontro, manifestando sua desconfiança). Elomar pediu um valor cinco vezes maior que o de mercado para liberar suas músicas, mas enfim acabou cedendo – Ferreira não explica exatamente como e em que circunstâncias. Um dos artistas mais gravados pela Kuarup, Elomar apareceu na série Cantoria (inclusive num volume solo) e no projeto erudito-popular ConSertão, com Arthur Moreira Lima, Heraldo do Monte e Paulo Moura – nesse contexto Elomar definiu a estética “sertaneza”, definida por ele como a música “do Grande Estado do Sertão, que vai do norte de Minas Gerais até o sul do Maranhão”.

Na fase paulistana, a Kuarup olhou mais diretamente para o passado, licenciando para relançamento álbuns históricos pertencentes aos acervos mortos das multinacionais, casos de Na Madrugada (1966), dos sambistas cariocas então estreantes Elton Medeiros e Paulinho da Viola, e de Imyra, Tayra, Ipy (1976), de Taiguara, bardo uruguaio radicado brasileiro que deixou marcas profundas na música brasileira dos anos 1960 e 1970.

Ferreira também tem investido em nomes novos: lançou os primeiros álbuns da explosiva Alice Caymmi, neta de Dorival, e de Lenine Guarani, filho de Taiguara, que até aqui não encontrou o eco que sua música merece e estacionou no primeiro e até agora único álbum, o belíssimo Menino da Silva (2013). Detalhe hoje quase exótico, a Kuarup é das poucas gravadoras sobreviventes que ainda lançam CDs físicos de trabalhos inéditos – entre os mais recentes estão álbuns de encontro de Renato Teixeira com o cearense Fagner e do mesmo Renato com o pianista carioca Antonio Adolfo (o recém-lançado Combinados, apenas com músicas novas compostas em dupla).

A luta pela sobrevivência obriga também à hoje inescapável diversificação de atividades, inclusive para o campo audiovisual. Nesse departamento, a Kuarup produziu recentemente, em associação com núcleos globais como Canal Brasil e Globoplay, a série de ficção Hit Parade e documentários sobre o jornal “espreme-que-sai-sangue” Notícias Populares e a dupla ultracomercial de produtores e compositores Michael Sullivan & Paulo Massadas. Esse lado, digamos, mais pop seria provavelmente impensável para a Kuarup de Aratanha – e talvez mesmo para a de Ferreira, nos anos iniciais. Parece estar garantindo sobrevida à gravadora e até a abertura de novas frentes nem tão comerciais, como a editora literária Kuarup, que já publicou um minucioso livro sobre a história do sambalanço, escrito pelo veterano jornalista musical Tárik de Souza, e biografias de músicos “malditos” e/ou experimentais como Geraldo Vandré, Taiguara e Hermeto Pascoal.

No balanço de altos e baixos, Tocando em Frente demonstra a precisão do nome escolhido lá atrás por Mário de Aratanha: Kuarup é o ritual de povos indígenas do Alto Xingu em reverência a seus mortos. Há quase 50 anos, o papel da Kuarup-gravadora tem sido não apenas homenagear músicas, músicos e gêneros musicais que a indústria de massa teima em matar cotidianamente, por vezes às raias da ressurreição. Com o livro de auto-pajelança, faz o ritual dos mortos (e dos vivos) em honra a si própria, sublinhando as inúmeras vezes em que esteve à beira da morte, e não morreu. A indústria musical pesada e bélica continua vencendo sempre – mas nem sempre, proclama a Kuarup, uma espécie de pulmão que segue filtrando modestamente a fumaça tóxica e os pesticidas expelidos por velhas gravadoras e jovens big techs. | Texto de Pedro Alexandre Sanches/Especial para Opera Mundi.


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