Brasil desconhece a realidade de 554 mil garotas de 10 a 17 anos que são esposas, cuidam de filhos, marido, casa e estão perdendo direitos e oportunidades
Catingueiras magricelas e peladas, sol forte, uma cabrita, um bode e algumas galinhas são quase tudo que Ivonete Santos da Silva, 14 anos, vê ao longo do dia por semanas a fio. Mãe de Rayslani, 1 ano, ela dorme cedo.
A casa de taipa onde vive, no sítio Lagoa Nova, em Inhapi (AL), a 289 quilômetros da capital, Maceió, não tem lâmpadas nem TV. Ivonete juntou-se aos 12 anos com Sislânio Silvério, 21, seu primo. Deixou a escola sem aprender a unir as letras: “Era aperreio demais, tudo acontecia na hora do almoço, tinha que fazer comida, me arrumar, sair para estudar”. Nascida a filha, a atenção na família se redobrou. Não se arrepende. “Só quando estou bem estressada, limpando a casa, e a menina acorda chorando, penso: ‘Meu Deus, o que eu fiz?’ ” Ainda assim, considera que está melhor do que no tempo em que vivia na casa materna e dividia com a irmã a lida com os meninos pequenos. “Um dia, saí calada, o povo estava todo lá pra dentro. Fui embora com Sislânio.”
Ele trabalha na roça. Quando tem roça. Há cinco anos, o sertão enfrenta uma seca bruta; a terra está tão dura que é impossível plantar. Na única panela, no fogãozinho de barro, há feijão. Ivonete não faz planos, não pronuncia desejos – pelo menos a estranhos que invadem sua rotina –, mas responde como se sente: “Não sei direito. Sou um pouco mulher, pequena demais, meio criança também”. Quando fecha os olhos, do que se lembra? “De mim desenhando pé de maçã, árvore de morango.” Mesmo que morangos amadureçam a não mais que 30 centímetros do chão, era esse seu deleite na sala de aula. Queria ser professora, acha que não dá mais tempo. “Espero que minha filha case bem tarde, só com 17 anos, e não engane a escola para aprender tudo direitinho”, diz.
Um desavisado imaginaria Ivonete como fato isolado no Nordeste. Não é. O Brasil ocupa o quarto lugar no mundo em número absoluto de crianças casadas. As esposas de 10 a 14 anos são 65 709; delas, 2,6 mil firmaram compromisso em cartório e/ou igreja. No grupo de 15 a 17 anos são 488 381.
Os dados fazem parte do estudo sobre casamento infantil publicado em setembro passado pelo Instituto Promundo, que promove as relações de gênero não-violentas. O levantamento se concentra no Pará e no Maranhão, mas reflete a realidade nacional. “O fenômeno é rural e urbano, está nas capitais, nos rincões, não tem geografia específica”, explica a especialista em gênero e segurança humana Alice Taylor, uma das autoras. E já está tão naturalizado que nem se nota a lei.
O sexo com menores de 14, mesmo que consensual, é crime. Uma união só pode ser oficializada a partir dos 18, com exceção aberta pelo Código Civil para as grávidas de 16 em diante, com autorização dos pais. Aqui, não há políticas públicas que reduzam os números e protejam as garotas dos prejuízos ao antecipar esse passo de adulto.
“O assunto é tabu para o governo e a sociedade”, afirma a assistente social Neilza Buarque Costa, assessora da Visão Mundial, ONG internacional que há 40 anos atua no país em defesa da infância. “A menina perde direitos. Não brinca, não estuda. Torna-se vulnerável à violência doméstica, não decide a própria vida sexual, engravida cedo, está mais sujeita à morte materna e a perder o bebê.” Para Neilza, a relação marital precoce tende a perpetuar o ciclo de pobreza, com a garota tendo menos chances de desenvolver uma carreira e, futuramente, conduzir as filhas para uma escolaridade maior. “Do total de alunas que largam o colégio entre 10 e 17 anos, 75% estão casadas ou grávidas”, lembra.
Das sete garotas entrevistadas, apenas Ana Clara dos Santos, 16 anos, estuda. Cursa o 8º ano em Canapi (AL) a um custo alto: “Minha mãe não deixa meu filho, de 4 meses, morar comigo. Acha que não consigo cuidar dele e estudar. Só vou me sentir adulta quando ele vier para mim. Mas ela se apegou, não vai entregar o bebê”, diz. Ana, casada há dois anos, teve um parto atribulado.
A 100 metros de casa, ocorreu uma troca de tiros, e ela passou mal. Chamaram o parteiro às pressas, Michel nasceu de madrugada. “Tomo pílula, não quero mais filhos.” Embora em seus sonhos surja sempre uma Ana solteira, de saia curta e saltão, segue casada por gostar de Jaílson Oliveira, 18 anos, e “também porque casamento, filho… essas coisas não têm volta”.
Os motivos da união precoce, segundo o estudo: gravidez; desejo da família de controlar a sexualidade da filha, impor limites às atitudes “de risco” e garantir estabilidade financeira. Por vontade própria, a menina casa para se livrar do mando dos pais, da violência doméstica. Às vezes, aceita um idoso por status; e ele quer uma esposa atraente, que possa dominar e moldar a seu gosto.
Ilda Lopes Witiuk, doutora em serviço social e professora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, orienta alunos que atendem na Maternidade Alto Maracanã, em Colombo, na região metropolitana de Curitiba, onde 40% das parturientes são menores. A cidade tem um dos maiores índices de casamento infantil do estado. Ilda cita uma garota de 13 anos que voltou ao hospital com seu bebê, a quem tratava como uma boneca. Sentia-se importante como esposa e contou que suas irmãs “se prostituíam”. Ela se gabava de ter sido “salva” pelo parceiro. “Quando esse marido chegou, eu me assustei”, diz Ilda. “Era um pastor de mais de 50 anos.” Ela crê que casar cedo seja uma opção determinada pelo meio. “Filhas de mulheres que engravidaram muito jovens não assimilam outro projeto que não seja casar”, considera.
“A escola, na periferia, não mostra uma saída possível e o estudo não representa um valor.” A conclusão: “Está oficializada a violência contra as meninas no casamento, com o consentimento dos pais e do Estado”, assegura. Para o cientista social Renato Alves, do Projeto Infância Saudável, ligado ao Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, o Estado deve tomar medidas, facilitar o acesso à contracepção, à educação sexual. As famílias e as garotas precisam de apoio para atingir maior autonomia econômica e social. “Tudo é importante. Porém, a melhor maneira de prevenir é ter sonhos. E as meninas não sonham mais.”
O relato da alagoana Susi (seu nome foi trocado para preservá-la), 15 anos, ilustra a observação de Renato. “No sábado, meu marido joga futebol e no domingo ‘corre boi’ (competição que envolve vaqueiros e animais). Já eu, ainda não descobri do que gosto. Antes, me via de branco, de noiva, na igreja. Ilusão para quê? Deixei a escola porque meu marido tem ciúme e não quer que eu cresça.
Aqui, as pessoas não sonham alto nem pensam num emprego para depois casar.
E quem estuda, como uma prima que se formou, não acha onde trabalhar.” Ela terminava a entrevista quando o marido chegou de moto, fazendo um barulhão – ele sabia onde a esposa se reunia com a nossa equipe. Sem desligar o motor, berrou: “Que demora é essa, da febre do rato, mulher?” Ali, febre do rato quer dizer, coisa ruim, errada. “ ‘Bora’ pra casa.” Mais que depressa, em indisfarçável pânico, ela subiu, calada, na garupa. O homem acelerou, seus gritos continuaram embaixo do poeirão que levantou. Sumiram na estrada.
Joyce Pinheiro, 15 anos, pelo contrário, tem em Brendon Cordeiro, 20, um aliado. No bairro Ana Terra, de Colombo, em dois cômodos e um banheiro, o casal se vê preso à novidade que revirou a vida deles: as gêmeas Kauany Vitória e Karyne Manuele, de 15 dias. O marido está sem trabalho; troca os bebês, dá banho, olha à noite para Joyce cochilar. Foi o terceiro namorado dela. “Conheci Brendon e ele logo me falou que desejava ter filhos. Eu também. Parei de tomar pílula e em três meses engravidei”, relata. Aos 12 anos, ela começara a sair à noite com as amigas. “Meninas solteiras têm má fama. Os boatos não demoraram: ‘Ela vai virar galinha e ficar barriguda’. Isso me incomodou, decidi ter minha família.”
A mãe das gêmeas acha a maternidade um caminho natural: “Das 20 e poucas que estudavam comigo, 16 estão casadas ou são solteiras com filhos”. Joyce não vai mais à balada porque acha perigoso para uma menina ficar por aí. Ultimamente anda atarefada, mas pouco antes de engravidar brincava de Barbie com a sobrinha. Hoje, já demonstra preocupação de mulher casada há milênios: “Engordei e fiquei com estrias. Agora Brendon pode me trocar por uma magrinha”. Os bebês choram pouco. “Só para mamar ou quando sentem cólica”, diz. “O problema não é cuidar, mas, sim, pensar que elas logo farão escolhas. Dá medo: e se decidirem ter filhos cedo?”
Não é o futuro da cria que preocupa Monique Barbosa, 15, mas o próprio destino. Ela ama Maria Clara, 8 meses, fruto da relação com Dener Wilker Lima, 20 anos, a quem se juntou há dois anos, em Colombo. Monique carrega culpa por ter insistido com o rapaz para viverem juntos. Era para ser um romance. A descoberta da gestação no quinto mês disparou o alarme. “Eu não queria, ele não queria, ninguém queria.”
O vacilo foi esquecer a pílula. “Pensei: ‘Perdi a minha vida. Tinha tudo pela frente, ia ser policial’.” Antes, fazia curso de cabeleireira de manhã, ia para a escola à tarde e esperava a mãe buscá-la. Está, agora, enredada na agenda sem fim, lavando, passando, cozinhando para o marido e a filha. “Não sobra tempo para conversa”, diz. “E ele também não é de diálogo.” Outro entrave para a sua juventude é a possessividade do parceiro. “Facebook, vestido curto, roda de amigas… tudo dá encrenca. A vontade é de desistir. Mãe, porém, arruma paciência. Não era isso que eu imaginava, mas aceito.”
Para Jamille Henrique, 15 anos, mulher tem uma árida sina. “Todas apanham. Não acho bom, mas é o que acontece”, diz. “Meu pai chega bêbado em casa e briga com os filhos. Ele bate em minha mãe. Quando eu morava lá, cuidava dos meus oito irmãos para ela trabalhar de doméstica.” Jamille se alimenta e dorme melhor na casa da sogra, no Sítio Albino, em Canapi, seu endereço desde que aceitou uma aliança de Marcelo Lino da Silva, 22 anos. Foi um alívio deixar a violência para trás.
Os dias estão mais leves. Ela, porém, não desanuviou o semblante. Parece desconfiada, tateando o espaço recém-conquistado. Era virgem quando recebeu dele o presente, em 2014. Como todas as meninas desta reportagem, não se casou no cartório. Nunca tinha ouvido falar em pílulas; a primeira, ganhou da cunhada. “Tenho vontade de trabalhar como doméstica, mas ainda não falei com o marido”, conta. “Marcelo é engraçado, imita pessoas e me ensina muitas coisas. Gosto de brincar com ele. O sexo é bom.” Jamille se orgulha do marido, que vai longe, de carro de boi, buscar água para o consumo deles. Ela se sente mais menina que casada; por isso, adiará a maternidade o quanto puder.
Ilda nota que as garotas sabem que um descuido com a pílula pode dar em gravidez. “No entanto, acham que nunca acontecerá com elas”, explica. Foi assim com a paulistana Thainá Darri, 17 anos. “Ainda não caiu a ficha”, diz ela, dois dias após o resultado do exame. “Planejava um filho aos 26 anos.” Seu perfil difere da maioria. Líder em Heliópolis, uma das maiores favelas do país, ela é feminista, conselheira de meio ambiente e, desde os 14, atua na União de Núcleos e Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas). Até dezembro, quando concluiu o ensino médio, trabalhava na ONG como arte-educadora. O desejo de fazer faculdade de ciências sociais foi protelado. “Preciso priorizar o bebê.”
A despeito da biografia de líder, seu histórico de casada coincide com o das demais. Juntou-se com Pedro dos Santos, 21 anos, há quase dois, porque estava cansada das exigências da mãe, que, segundo Thainá, tem obsessão por limpeza. “Eu queria o meu canto e privacidade”, afirma. O pai aceitou, a mãe avisou: “Se você for, não volte”. Pedro e Thainá compraram uma cama de solteiro, alugaram um barraquinho e seguiram. Com o salário de ambos – ele é vendedor – mudaram para uma casinha maior e já dormem em cama de casal. Mas ela ainda é uma menina e terminou um contrato de trabalho. “Meu lado emocional não está preparado para tanta coisa. Já marquei um psicólogo para administrar as mudanças na minha vida e acomodar nela o papel de mãe.” É muita clareza para tão pouca idade.
Por Patrícia Zaidan