BAHIA | Faculdade expulsa homem com vitiligo por suposta fraude em política de cotas raciais

VITÓRIA DA CONQUISTA* – A UFSB (Universidade Federal do Sul da Bahia) decidiu anular as matrículas de quatro estudantes de medicina que ingressaram por meio de cotas raciais e, segundo a instituição, não têm traços fenotípicos de pessoas negras ou pardas.

A decisão sobre a anulação, divulgada pelo Comitê de Acompanhamento da Política de Cotas da UFSB na quarta-feira (7), diz respeito aos estudantes Luísa Acrux Gusmão, Letícia Lacerda de Oliveira, Carina Oliveira de Carvalho e Gildásio Warllen dos Santos.

De acordo com a decisão, os universitários, que estão nos anos finais do curso de medicina, não têm direito a aproveitar as disciplinas, e qualquer certificado emitido pela UFSB durante o curso perde validade. Outros quatro estudantes que aparecem no mesmo relatório de averiguação foram considerados como negros ou pardos.

O caso que mais chama a atenção é o de Gildásio Warllen dos Santos, 33, cujo corpo é 100% despigmentado por causa do vitiligo, doença com a qual convive desde os 2 anos. Ele conseguiu uma decisão temporária do TRF1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região) para manter sua matrícula até o Judiciário terminar de analisar sua situação. A UFSB recorreu.

Santos, que afirma ser pardo, não quis comentar a decisão da UFSB, mas em reportagem do dia 18 de junho declarou à Folha de S.Paulo que a universidade atuava para destruir sua “identidade social, sonhos e futuro”.

Na avaliação do comitê da UFSB, “em que pese o seu vitiligo universal, do qual é portador, antes e depois da despigmentação, (Santos) não tem traços fenotipicamente negroides, como nariz e boca negroides”.

“Além disso, sua pele anterior à despigmentação foi considerada branca. A boca do denunciado é fina e o nariz do denunciado não tem dorso largo nas narinas, além de outras características. De todos os denunciados, os traços do denunciado, mesmo antes de passar por uma despigmentação, sempre foram não negroides”, afirma o relatório do comitê da UFSB.

O comitê da UFSB considera como traços fenotípicos de pessoas negras ou pardas a cor de pele escura, retinta, ou escurecida; o cabelo crespo; o nariz negroide, com dorso largo e narinas largas; e lábios grossos e carnudos.

“Esses traços, utilizados para a heteroidentificação neste processo, são aqueles utilizados por racistas para reconhecer, humilhar e excluir a população negra brasileira”, afirma o relatório de averiguação sobre os traços fenotípicos dos alunos.

Com esses casos, agora já são oito matrículas anuladas em 2021 por suposta ausência dos traços fenotípicos nos estudantes investigados. Outras três matrículas foram anuladas em 2020, dois por suposta fraude nas cotas para transgêneros e um nas cotas para negros e pardos.

Entre 2020 e 2021, foram averiguadas cerca de 60 denúncias, de acordo com o comitê da UFSB, segundo o qual a maioria dos estudantes envolvidos são de medicina – já houve também casos de alunos do BI (bacharelado interdisciplinar) em saúde.

Na universidade, um estudante para se graduar em medicina tem de cursar primeiro o BI (duração de três anos) em saúde, dois anos de ciclo clínico e mais dois de internato. No caso dos estudantes que tiveram as matrículas anuladas, todos estão na fase de ciclo clínico.

Ao comentar as anulações de matrículas, o presidente do Comitê de Acompanhamento da Política de Cotas da UFSB, Gabriel Nascimento dos Santos, disse à Folha que “na maioria das vezes fica claro para a gente que os denunciados querem, em suas vicissitudes, ocupar um lugar de poder”.

“Vão fazer uso da ambiguidade que o racismo brasileiro causa, ao estereotipar uma dada população negra, ao mesmo tempo em que busca desidentificar essa população negra quando se trata de poder e política pública”, diz.

No caso da estudante Carina Oliveira de Carvalho, o comitê da UFSB avaliou que ela “só tem um traço mais evidente que pode ser reconhecido como negroide, não podendo ser heteroidentificada enquanto tal. Prejudicada a posição de a identificar como negroide em seus traços, seu cabelo não é crespo e sua pele é clara”.

Letícia Lacerda de Oliveira “foi reconhecida como não tendo nenhum traço reconhecidamente negroide” e Luísa Acrux Gusmão “como tendo um traço mais próximo ao perfil de nariz negroide (narinas largas), não podendo ser assim heteroidentificada para fins desta política com dois ou mais traços. Sua cor é clara e seu cabelo não é crespo, não sendo assim possível reconhecer a denunciada como negroide”.

A Folha não localizou a estudante Letícia Lacerda de Oliveira para comentar o caso. As alunas Luísa Acrux Gusmão e Carina Oliveira de Carvalho responderam por meio do advogado Guilherme Moreira, para quem “o comitê está sendo utilizado de maneira incorreta”.

Para o advogado, o comitê da UFSB não respeita a legislação que regula o processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal.

A lei diz que “o direito da administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé”.

“As estudantes ingressaram em 2015 e estamos em 2021, já decaiu o prazo. Além disso, em nenhum momento houve má-fé por parte delas. Ninguém se disfarçou de negro ou pardo para conseguir uma vaga”, afirmou.

O advogado disse que não é contra o comitê da UFSB: “Acreditamos que eles são necessários para que se dê a devida utilização da lei de cotas raciais. Entretanto, a maneira que a UFSB utiliza o comitê está infringindo normas legais”.

Guilherme Moreira informou que tenta obter liminar em favor de Luísa e Carina na Justiça Federal, mas que ainda não houve decisão. As estudantes, segundo ele, foram orientadas a recorrerem da decisão no âmbito administrativo.

A UFSB, ao comentar sobre supostamente estar atuando fora do prazo, informou que “depois de anos a universidade ainda pode anular seus próprios atos, quando maculados por fraude”.

O Comitê de Acompanhamento da Política de Cotas da UFSB é composto por 20 pessoas. Primeiro, os casos dos alunos são avaliados por uma comissão formada por três membros do comitê, que elaboram um relatório com parecer sobre o caso.

O parecer é submetido ao comitê, cujos integrantes também dão sua opinião a respeito do assunto. Ao final, eles fazem um relatório com o resultado. Caso o estudante opte por recorrer da decisão do comitê, é criada outra comissão independente (com três pessoas) e feita nova avaliação. | *Por Mário Bittencourt, da Folhapress


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