ÁUDIO-POEMA | Não é o quê? (Marco Antonio Jardim)*

Imagem: Bárbara Jardim

Se penso que nem é tão fácil unir distâncias, quiçá casar entendimentos com refazimento interior, vou da Serra a Salvador.
Visto short jeans desfiado, prendo o cabelo no alto com cordão, em coque baiano, ponho óculos escuros quadrados, sandálias de couro, colar de sândalo e tornozeleira de macramê, camiseta mostarda, como que nodoada de bronzeador, e vou.
Pontas dos dedos e mãos espalmadas, brisando esses mares de arpoador.
Fluindo, tal qual um lenço estampado, cacheado na cabeça de minha prima, afeto de Santa Bárbara, Iansã.
Ela, fina, caminhante de Ondina, respirante de sol a pino, corpo em brasa de praia.
Eu, gringo confundido, neo-hippie, surfando em sua saia, a cozer, a criar, eu espuma do mar.
A meio quilômetro, na Barra, um tanto mais de fascinação.
Um misto de axé, de samba, de “Drive”, do som electro marcial de Agnes, um caldo de verão.
Para além das horas, só que só, queimando a palha da calha do canal, a tênue poeira de maresia, o sal.
Ele, o sol, reavivado.
Eu, subitamente elogiado, sorvendo suco de cupuaçu gelado diante da vista acachapante, da ponta de areia ao mirante, um dia místico, transformador.
Um pedaço da estrada de casa, tempo de brilho na velha ladeira do Tororó, ruas estreitas, escadarias, azulejos e sobrados.
E o largo, bebido no boteco da tarde do final.
À vista da luz cintilante do alto da igreja da Capelinha, vó Dilma, o Dique, a Lapa, o Amparo, Nazaré e, na palma da mão, a conchinha da memória azul de uma outra distância, Piatã.
Entre gostosos vozerios femininos – Ivanas, Marianas -, meus olhos fecham ao som ritmado das águas (e da moçada em sungas cavadas).
A canga molhada de Lu tocando meu braço nu, camada por camada, corpo vivo à beira-mar, a se encerrar.
No gramado do morro, alguma permanente visão de beleza.
O sol deposto do olho, tecido, um cigarro tramado perdido, e o meu papel de escritor diante de um espantoso céu lilás.
As coisas desejam ser vistas assim além do Carmo, entre o violeta e o laranja, o Paço e o prisma, o riso de um Purki platinado e a Marujada, o Pedro Arcanjo e a voz pausada de Tainá.
Portos de barcas a navegar em calmaria.
Ao norte, na encosta, Gamboa de Baixo, bar de Mônica, píer com vista infinita, flertes, peles bronzeadas, ou, antes disso, do alto, o Solar do Unhão.
Mirei o abraço-fulgor da Baía numa verdade imaginada, fotografias do pôr-do-sol até o meio do verão.
Dias quentes em que me dei o direito de ser marinheiro livre, náufrago feliz, espírito em vão.
Vejo, ouço, toco esta cidade líquida e seus deliciosamente desordenados veios de areia.
É isto ou aquilo no Morro do Cristo.
É chamada, é vinda, mergulho fundo com cheiro de água de coco e manjericão, pescado e camarão.
Cidade-gosto, salgada de se ver.

E não é o quê?

Marco Antonio Jardim é formado em História, empresário da área de publicidade com a agência vOceve Multicomunicação, assessor de imprensa, diretor de conteúdo e marketing digital, escritor e poeta.

 


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