ARTIGO | Um flanear pelo centro histórico de Salvador (Josevan Dutra dos Santos)*

Salvador é uma cidade multifacetada, busco com esta palavra aproximar as imensuráveis distinções que congregam a capital baiana. Podemos atentar ao fato da cidade, indissociavelmente, ter a sua geografia convencionada em cidade alta e cidade baixa, este é apenas um exemplo da capacidade que possui Salvador em agregar aspectos dísticos e que concorrem para moldar a sua forma peculiar, que não pode ser definida e caracterizada apenas pela soma de suas partes.

Pois, há uma fenomenologia enraizada na atmosfera soteropolitana. Discrepâncias se apresentam paralelamente, visíveis a “olho nu”, basta, por exemplo, transitar por uma de suas principais avenidas, a Avenida Paralela, para testemunhar uma paisagem contrastada, envolvendo os bairros que a circunda; de um lado, suntuosas construções verticalizadas; do outro, aglomerações de imóveis com  ocupações irregulares, sobressaindo a tonalidade marrom das paredes sem reboco, estreitas escadarias e encostas.

Bairros de composição arquitetônica distinta e problemas sociais distintos, formando uma maquete imaginária e polarizada. Soma-se a isso a efervescente religiosidade, múltiplas crenças são cultuadas por legiões de fiéis de classes sociais diferenciadas. No aspecto cultural, uma miscigenação envolve manifestações artísticas. 

A Capital baiana agrega tais aspectos e os exprimem em sua forma estética, holisticamente, envolvendo micro e macro nos lugares que a compõe.

Desta forma, no que diz respeito aos lugares de Salvador, detenho um fetiche por alguns deles, e, casualmente me dou a visitá-los. 

Um destes é o Centro Histórico de Salvador, adoro vagar/flanar por aquelas paragens, talvez por ter sido o primeiro local onde perambulei, ao chegar na metrópole baiana. No início, tive a sensação que já conhecia as estreitas ruas do Pelourinho e adjacências, talvez por ter lido anteriormente alguns romances do Jorge Amado, isso acrescentou positivamente na minha adaptação à nova moradia na cidade. 

Quando tenho a oportunidade de me dirigir ao Centro Histórico de Salvador, costumo flanear por um espaço, que envolve um trajeto de aproximadamente 2,5 km de extensão.

Assim, numa manhã ensolarada de sábado, arvorei-me a fazer o percurso, iniciei a partir da Praça da Piedade, seguir sentido o Relógio de São Pedro, “confeccionado em Paris, por Henri Le Pante, e a sua base escultórica atribuída ao artista Pasquale De Chirico”, observei o painel com algarismos romanos, estava parado, desvencilhei-me do assédio de alguns vendedores ambulantes; continuei a andar, desci a ladeira de São Bento; ganhei a Praça Castro Alves, ali, sob o brilho do sol e um céu azul celeste contemplei a escultura do poeta Castro Alves, revelando-me um signo linguístico, a mão estendida, posto a declamar sua poesia libertária aos transeuntes; concomitantemente, reverenciei o mar, às costas da estátua do poeta, apresentando águas calmas e espelhos reluzentes; naquele instante, a paisagem estética associava os quatro elementos da natureza ao monumento e os unificavam às antrópicas arquiteturas neoclássicas, no entorno da Praça. 

Desloquei-me sentido Pelourinho, atravessei a esquina da Rua Ruy Barbosa, deparei com uma bifurcação, envolvendo a Rua Chile e a Rua Da Ajuda, onde o suntuoso imóvel do antigo Palace Hotel se apresenta; porém, sem a tradicional Loja O Adamastor,  o ponto comercial localizava-se na parte térrea e externa do antigo Hotel Palace, funcionava como uma loja de confecções para homens e vendia ternos, gravatas e sapatos sociais, o local levava o nome do Sr. Adamastor Rocha, pai do cineasta Glauber Rocha. 

Optei pela Rua Da Ajuda, na primeira esquina entrei a direita e desemboquei na Rua Ruy Barbosa, olhei para o início da mesma, sentido Praça Castro Alves, observei o imóvel abandonado onde funcionava o Cinema Tamoio, ao lado da Farmácia homeopática, que resiste ao tempo, cheguei à loja de Sebo do Brandão; ao adentrar, sentir-me embriagado ao inalar o odor exalado pelos livros. 

Percorri os estreitos labirintos da loja, circundados por estantes, a cada título que conseguia ler nas capas de alguns deles, viajava pelos quatro cantos do mundo; parei um instante, refletir sobre o pregresso significado de inúmeras daquelas coleções de livros, que ali se encontravam e quantos motivos concorreram para que chegassem até aquela loja. 

Ocorreu-me pensar nas pessoas que teriam sido donas de muitos daqueles exemplares e que haviam morrido, talvez os parentes teriam considerados os livros sem serventia e os descartados, vendendo-os à Loja de Sebo! Desvencilhei-me do pensamento sobre o histórico dos livros. 

Visualizei um livro com o título “Confesso que vivi”, de Pablo Neruda (1904-1973), poeta chileno contemplado com o Prêmio Nobel da Literatura de 1971. Encontrei um outro livro “O Deserto dos Tártaros”, do escritor italiano Dino Buzzati, (1906-1972). Ambos os livros eu já havia lido, mas, emprestei e não os tive de volta, examinei rapidamente os exemplares, dirigi-me ao caixa e paguei.

Saí da loja de Sebo do Brandão, continuei na Rua Ruy Barbosa, entrei numa outra pequena loja de Sebo, acoplada com Lan House e venda de café, no interior da mesma encontrei um ex-colega da Faculdade de Filosofia, trajava roupas e boina pretas, usava um cachimbo pendurado na boca; nos cumprimentamos e passamos a conversar, mas, não estendi o diálogo, observei o pedantismo do rapaz, alimentando uma persona caricaturada de um filósofo europeu do século XIX, evadi do local, entrei numa rua transversal, me vi na Rua Chile, seguir pela calçada do Palácio Rio Branco, intentando chegar à Praça da Sé, transitei em frente a Praça do Elevador Lacerda, alcancei a Rua da Misericórdia, percorrendo o passeio do Museu da Misericórdia, cheguei à Praça da Sé, desloquei-me até a galeria do Edifício Themis, visitei uma loja onde vende imagens e acessórios relacionados às religiões de Matrizes Africanas, adquiri alguns postais, contendo imagens de Orixás, deixei o prédio, novamente diante da Praça da Sé, a paisagem ampliou-se, olhei a esquerda, vi a Praça do Monumento da Cruz Caída, ao fundo, vislumbrei, outra vez, a imagem da Baía de Todos-os-Santos, observei ao lado o imóvel desativado do antigo Cinema Excelsior e adiante a entrada para acesso ao Plano Inclinado dos Gonçalves; voltei a atenção para o lado direito da Praça, onde há a loja que comercializa instrumentos musicais, A Primavera, adiante a entrada, em frente a Igreja Basílica, que dá acesso ao Terreiro de Jesus. Cheguei ao Terreiro de Jesus, fui ao Bar O Cravinho, havia alguns conhecidos de tempos atrás, no pé do balcão, pedi uma infusão de jatobá, solicitei uma porção de camarão empanado com tapioca, enquanto bebericava a infusão e aguardava o tira-gosto, teci conversa com os funcionários do Bar e com um dos meus conhecidos, me disse que havia se aposentado, rememoramos algumas lembranças, o tira-gosto foi servido, socializei com o pessoal, bebi outra dose da infusão, paguei a conta e me despedi. 

Voltei à Praça da Sé, tracei o caminho inverso, sentido Praça da Piedade; porém, ao chegar na Praça Castro Alves, ao invés de subir a Ladeira de São Bento, seguir pelo lado direito, rumo a Rua Carlos Gomes, cheguei ao Mercado das Flores, encontrei o senhor Eduardo, uma pessoa carismática, proprietário de um boxe onde comercializa flores no Largo do Mercado das Flores e próximo ao Restaurante Porto do Moreira, conheço o senhor Eduardo desde quando eu era estudante universitário e perambulava pelo Largo Dois de Julho. 

Após uma rápida conversa, segui para o Largo Dois de Julho, via Rua do Cabeça, no trajeto, passei em frente a esquina que dar acesso a Rua do Sodré, observei o minúsculo Bar Mimosa, outrora frequentado por pessoas célebres de Salvador, que ali gostavam de beber um trago de cachaça. 

Deparei-me com o Largo Dois de Julho, cruzei frente a Rua da Forca e me dirigi até o restaurante O Líder, já se passava do meio dia, acomodei-me em uma das cadeiras, anexa a uma das mesas na entrada do restaurante, o garçom se dirigiu a minha pessoa, apresentou-me um cardápio, perguntando o que eu desejaria naquele momento, solicitei uma cerveja, o rapaz afastou-se a fim de providenciar o meu pedido, enquanto comecei a folhear um dos livros que havia comprado no Sebo, O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati, a narrativa conta a história de um jovem oficial, Giovanni Drogo, destacado ao sair da Escola Militar para a Fortaleza Bastiani, situada na fronteira com um reino setentrional. 

Para além dela se estende uma planície imensa, o Deserto dos Tártaros, que a séculos não vem sinal de vida. Tal guarnição parece inútil, devido a ausência de inimigos visíveis ou prováveis. Mas há a ilusão de um perigo virtual e constante, que poderia causar a guerra e dar aos oficiais e soldados a oportunidade de mostrarem o seu valor. 

Por isso todos criam expectativas, que ao mesmo tempo é a esperança de poder um dia justificar a vida e ter ocasião de brilhar. Coloquei o livro de volta na sacola e lancei mão da obra Confesso que vivi, de Pablo Neruda, lançada no Brasil em 1977, traduzida por Olga Savary, Editora Difel, a obra é capaz de prender o leitor desde o início, de um total de 358 páginas e vários capítulos, o poeta descreve o trajeto da sua vida, valendo-se de uma prosa recheada de trechos poéticos. 

Resolvi ler um pouco, não me dei conta que o garçom havia retornado à mesa e me servido uma cerveja, estupidamente gelada, ao tempo em que tocou com a mão levemente no meu ombro e perguntou se eu iria querer mais alguma coisa naquele momento, o pedi desculpas pela desatenção e respondi que posteriormente o pediria algum alimento, tornei-me à leitura, procedi uma sequência de risos; com isso, percebi que eu estava chamando a atenção de algumas pessoas ali presentes, atentei que me olhavam emitindo expressões mescladas de curiosidade e espanto, preocupei-me, talvez imaginassem que eu estivesse surtando ou os satirizando. 

Nesse ínterim, me surpreendi ao ser inquerido por uma mulher, aparentava ter entre 35 a 38 anos idade, observei que ela possuía traços faciais invejáveis e um olhar tênue, em pé e frente a mim, dirigiu-me a palavra em castelhano _te gusta Neruda?!. A respondi de forma monossilábica _sí!. _Muy bien, es poeta de mi tierra!. Complementou a balzaquiana. _Maravilloso, tu país tiene un poeta brillante!… Após uma rápida apresentação, ela me disse que se chamava Martina, falamos sucintamente sobre nossas ocupações profissionais e gostos literários, ela convidou-me a sentar à mesa onde estava, aceitei, apresentou o seu companheiro, disse que se chamava Nicolás, um rapaz, aparentemente, detentor de modos requintados e uma conversa recheada de assuntos variados. 

Numa das conversas, a chilena me passou informações sobre o Pablo Neruda, que até então eu não conhecia, disse-me que o pseudônimo do poeta foi uma homenagem ao escritor checo Jan Nepomuk Neruda (1834-1891), um dos principais representantes do realismo checo. Neruda teria escolhido o pseudônimo aos 17 anos, supostamente para esconder do pai o ofício de poeta. 

Falou-me também que, em 1945, após ser eleito senador, Neruda esteve no Brasil e leu suas poesias para mais de 100 mil pessoas no Estádio do Pacaembu, em São Paulo, em homenagem ao líder comunista Luís Carlos Prestes.

Após algum tempo na companhia do casal, atentei-me para as horas, já se fazia o meio da tarde, aquela altura, com o etílico da cerveja invadindo o cérebro, meu vocabulário em castelhano já não fluía tanto, tornou-se uma pronúncia híbrida, mesclada entre castelhano e português, mas, não foi empecilho para que a comunicação se mantivesse. Conversamos sobre variados assuntos relacionados às nossas realidades, aprendi um pouco em relação a cultura chilena. 

O casal despediu-se de mim, disseram que iriam descansar na pousada onde estavam hospedados, próximo ao Farol da Barra, convidou-me a encontrá-los à noite, mas, eu os disse que não seria possível, trocamos contatos, sugeriram que eu fosse ao Chile e os visitassem, agradeci a gentileza do convite e os prometi que iria, logo que tivesse uma oportunidade. 

Após isso, paguei o que consumir e trilhei a voltar para casa, carregando uma grata sensação por conta dos momentos que vivenciei, a mente povoada de imagens do Centro Histórico e personagens fictícios; esses, certamente ocuparão parte dos textos escritos por este que aqui vos escreve. | Josevan Dutra dos  Santos é pesquisador científico, mestre em Geografia na UNICAMP e filósofo pela Ufba.


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