O Supremo Tribunal Federal iniciou, na última sexta-feira (12.03), o julgamento da Ação Direita de Inconstitucionalidade nº 6119, que versa sobre o requisito de efetiva necessidade para a posse de armas de fogo.
Trata-se de uma impugnação promovida pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) ao conteúdo do Decreto nº 9.685/19, o primeiro sobre armas publicado pelo atual governo e que estabeleceu uma presunção de efetiva necessidade para a aquisição de tais artefatos. O decreto há muito já foi revogado, assim como seu sucessor (Decreto 9785/19), o mesmo o que alterou a redação deste (Decreto 9797/19). Ainda assim, o julgamento teve seu prosseguimento admitido e, com isso, reúne potencial para modificar substancialmente o acesso às armas no país.
A continuidade do julgamento em face de decretos já revogados, mesmo a despeito do entendimento da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da República de que já perdera seu objeto, decorre, essencialmente, de uma já manifestada compreensão do Relator, Ministro Edson Fachin, de que a impugnação originalmente formulada transcende o decreto em que contida, permitindo que a questão seja analisada sob a ótica de se dar interpretação conforme à Constituição Federal ao requisito de “efetiva necessidade” previsto em lei para acesso às armas de fogo. E é neste ponto que o voto condutor por ele apresentado culmina por instaurar uma verdadeira confusão jurídico-conceitual e subverter toda a sistemática regulatória idealizada pelo Legislador.
Em seu voto, o douto Relator, acolhendo a tese de inconstitucionalidade da presunção de efetiva necessidade originalmente contida no Decreto 9685/19 e, em sua visão, projetada também para a norma atualmente em vigor, propõe fixar a orientação hermenêutica de que a posse de armas de fogo só pode ser autorizada às pessoas que demonstrem concretamente, por razões profissionais ou pessoais, possuírem efetiva necessidade.
Deixando de lado qualquer análise crítica ao substrato do voto, que se pauta em uma pré-concepção de que armas legais destinadas à proteção do indivíduo culminam por prejudicá-lo em sua própria segurança – conclusão tomada à guisa de um suposto consenso científico sobre o tema que, em verdade, não existe -, o fato é que, ao erigir à temática constitucional o requisito de efetiva necessidade para acesso às armas, o Relator atropela uma distinção claramente estabelecida na Lei nº 10.826/03, popularmente apelidada de “Estatuto do Desarmamento” – mas que muito bem se poderia chamar de Lei Brasileira de Armas.
A disciplina legal sobre acesso às armas de fogo adotada no Brasil consagra a tutela a duas relações específicas entre elas e o indivíduo, uma estática e uma dinâmica. A relação estática, mais restrita, é a que se estabelece pela posse de arma, que se traduz na exegese dos arts. 5º e 12 da Lei nº 10.826/03, no direito de o seu proprietário “manter a arma de fogo exclusivamente no interior de sua residência ou domicílio, ou dependência desses, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja ele o titular ou o responsável legal pelo estabelecimento ou empresa”. Já o porte de arma, mais amplo, configura a relação dinâmica do agente com o artefato, englobando toda conduta que não se enquadre nas limitações da posse, como deixa clara a leitura dos arts. 14 e 16 da mesma norma.
Além disso, em sua estruturação, a Lei nº 10.826/03 trata a posse de armas, por regra, como permitida no país, fixando, em seu art. 4º, os requisitos para que sejam adquiridas. Já o porte, conforme estabelece o art. 6º de tal norma, é, por regra, proibido, comportando algumas exceções vinculadas a categorias específicas (caput e incisos I a XI), fora das quais apenas em cunho extraordinário se poderá autorizar alguém ao seu exercício (art. 10). E é, justamente, por se tratar de direitos diferentes, com abrangências absolutamente distintas e estabelecidos com regras antagônicas (permissão x proibição), que a Lei traz exigências díspares para cada um deles.
Para a aquisição de uma arma, que confere ao seu proprietário a posse, a Lei previu a exigência de requisitos objetivos, essencialmente traduzidos em: (a) declaração de efetiva necessidade; (b) comprovação de idoneidade; (c) comprovação de ocupação lícita e residência certa; e (d) comprovação de capacitação técnica e aptidão psicológica.
Confira-se o teor do art. 4º da Lei nº 10.826/03:
“Art. 4º Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes requisitos:
I – comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral e de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal, que poderão ser fornecidas por meios eletrônicos;
II – apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e de residência certa;
III – comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestadas na forma disposta no regulamento desta Lei.
Já para o porte de arma – repise-se: direito mais amplo e somente concedido por via excepcional -, o Legislador fixou critérios mais rígidos, exigindo, além dos mesmos requisitos para a posse, que se demonstre a efetiva necessidade, por exercício de atividade profissional de risco ou ameaça à integridade física do interessado.
Veja-se:
“Art. 10. A autorização para o porte de arma de fogo de uso permitido, em todo o território nacional, é de competência da Polícia Federal e somente será concedida após autorização do Sinarm.
§ 1º A autorização prevista neste artigo poderá ser concedida com eficácia temporária e territorial limitada, nos termos de atos regulamentares, e dependerá de o requerente:
I – demonstrar a sua efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física;
II – atender às exigências previstas no art. 4º desta Lei;
III – apresentar documentação de propriedade de arma de fogo, bem como o seu devido registro no órgão competente.”
Do que se extrai do texto legal, portanto, dentro de uma sistematização de direitos distintos e com abrangências igualmente divergentes, o Legislador utilizou verbos próprios para cada uma das relações. Para a posse, exigiu do interessado “declarar efetiva necessidade” (art. 4º); já para o porte, recrudesceu a exigência, para somente o deferir se o interessado “demonstrar a sua efetiva necessidade, por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física” (art. 10, § 1º, I).
São exigências nitidamente diferentes, pelas quais a demonstração de efetiva necessidade, vinculada a atividades profissionais ou ameaças pessoais, somente se reservou ao porte de arma, não à posse, para a qual o Legislador apenas previu uma declaração. E declarar não é demonstrar, até porque, se o fosse, a distinção claramente adotada pela norma legal não faria qualquer sentido, e todo aquele que satisfizesse os requisitos para a posse de arma também já a poderia portar, tendo em vista que os requisitos seriam os mesmos (!).
Declarar a efetiva necessidade se traduz em exigência inequívoca de que o interessado formalize a demanda por uma arma para a sua defesa e assuma as responsabilidades legais por isso, especialmente no caso de dar àquela destinação diversa. Já demonstrar, aí sim, se traduz em uma exigência comprobatória em concreto, vinculada à apresentação de meios de prova específicos para essa finalidade.
Assim é que, diante da sistematização expressamente adotada pelo Legislador, o voto do Min. Fachin na ADI 6119 culmina por igualar aquilo que a Lei distinguiu, passando a exigir para a posse de arma – direito de abrangência muito mais restrita – um requisito que aquela só exige para o porte (demonstração de efetiva necessidade), justamente por se cuidar de uma prerrogativa muito mais ampla. Em outros termos, isso equivale a reescrever a própria Lei nº 10.826/03, para nela inserir disposições que não contém. Até mais do que isso, para alterar aquilo que expressamente dispõe, invertendo-lhe o sentido.
Exatamente por isso – e com as vênias necessárias ao Ministro Fachin -, o voto apresentado para conduzir o julgamento da ADI 6119 passa longe de representar a expressão da melhor técnica aplicável ao caso concreto, avançando, isto sim, sobre funções típicas do Poder Legislativo, para alterar o mérito da deliberação que alcançou ao elaborar a Lei nº 10.826/03. Afinal, a prevalecer a compreensão do Relator, posse e porte de armas no Brasil terão se confundido, em termos de exigências legais, absolutamente na mesma coisa. E isso, para invocar a principiologia constitucional, não parece ser sequer minimamente razoável. |