Apesar do longo período transcorrido, as particularidades das duas crises sanitárias são semelhantes, como a profilaxia, a terapia e a medicação popular. As diferenças mais significativas estão na instabilidade administrativa e emocional dos presidentes Delfim Moreira (1868-1920), que governou o país de 15 de novembro de 1918 a 28 de julho de 1919, e Jair Messias Bolsonaro, chamados, respectivamente, de louco e de psicótico genocida.
O mineiro Delfim Moreira continuou o trabalho de enfrentamento do vírus iniciado pelo seu antecessor Wenceslau Braz (1868-1966), e retomado pelo seu sucessor, o paraibano Epitácio Pessoa (1865-1942). Vale destacar que Delfim assumiu a Presidência da República devido à morte de Rodrigues Alves, contaminado pela gripe antes de tomar posse para um segundo mandato, de 1918 a 1922. Nos seus primeiros quatro anos no cargo (1902 a 1906), o paulista Rodrigues Alves, com o auxílio do sanitarista Oswaldo Cruz, eliminou um surto de varíola e venceu a Revolta da Vacina, promovida por centenas de irresponsáveis – como hoje -, contrários à campanha de imunização.
A exemplo de Oswaldo Cruz, um especialista em infectologia – não se pensou em nomear um intendente do Exército – foi indicado pelo governo para coordenar os trabalhos contra o H1N1. Alçado a herói nacional, o médico Carlos Chagas estabeleceu isolamento e quarentena para os navios que chegavam aos portos do Rio de Janeiro, Salvador e Recife, por onde desembarcavam os passageiros contaminados vindos da Europa; criou ambulatórios de campanha (não havia hospitais públicos no país); aconselhou repouso absoluto aos primeiros sintomas da doença, sem direito a visitas; cuidados higiênicos com o nariz e a garganta e uso de máscaras. Fechou escolas e repartições públicas, e proibiu as chamadas festas populares.
A cloroquina, “menina dos olhos” do capitão-presidente, rejeitada até pelas emas do Palácio do Planalto, mas aceita por neopentecostais e devotos fanáticos do bolsonarismo, teve similares na época, mas nenhum produzido pela indústria farmacêutica. O povo em pânico recorria a inalações de vaselina mentolada, chás e infusões a base de quinino, gargarejos com água e sal, água iodada, tanino e outros “remédios”. Um deles, ganhou o título de bebida nacional, a tradicional caipirinha, conhecida mundialmente.
Por uma questão de justiça com a Espanha, país que me deu a segunda nacionalidade, o H1N1, segundo os pesquisadores, se originou no Fort Riley, nos Estados Unidos, transmitida para a Europa pelos soldados que foram combater na 1ª Guerra Mundial (1914-1918). As grandes potências estabeleceram um pacto de silêncio sobre a propagação do vírus para não criar pânico entre os soldados que lutavam nas insalubres trincheiras. Por não ter adotado a censura, a Espanha herdou uma imagem distorcida.
No Brasil, a gripe “desembarcou” do Demerara, em 9 de setembro de 1918, com 562 passageiros a bordo e 170 tripulantes, após uma viagem de 25 dias desde o porto de Liverpool, na Inglaterra, Após aportar no Recife seguiu para Salvador. O jornal “A Tarde” noticiou na época que 15 dias depois da chegada do “Navio da Morte” centenas de infectados lotavam os quartéis, escolas, igrejas e hospitais particulares da capital baiana.
Copa América
Uma das “loucuras” praticadas pelo presidente Delfim Moreira foi a de suspender os campeonatos de futebol do Rio e São Paulo e adiar a Copa América, de novembro de 1918 para maio de 1919, disputada no estádio do Fluminense, nas Laranjeiras, construído para o torneio. Pesou na decisão das autoridades governamentais e esportivas a morte de jogadores, técnicos e dirigentes dos clubes cariocas e paulistas. O Rio, particularmente, chorou a perda, aos 22 anos de idade, do atacante French, do Fluminense.
Um século depois, um presidente irracional, num desrespeito aos familiares das 500 mil vítimas da covid-19, contraria a ciência e pirraça a Rede Globo, autorizando a realização da Copa América. Uma decisão tresloucada, que já colocou em quarentena, nos primeiros dias da competição, 52 membros das delegações, entre atletas, técnicos e cartolas.
Ansiosamente aguardado, o comunicado público dos jogadores brasileiros foi uma peça ilusória. Sem mencionar os mortos pelo vírus, afirmaram que “não podemos dizer não à Seleção”, quando, na verdade, nunca deixaram de priorizar o dinheiro e os patrocinadores, acompanhando a Conmebol e CBF.
Nesses últimos dias, o torcedor brasileiro está priorizando um futebol de alto nível técnico e individual, mostrado na Eurocopa, em estádios com torcidas (Hungria x Portugal, em Budapest, foi assistido por 60 mil pessoas). Bolsonaro também teve a intenção de acariciar seu amigo Sílvio Santos, dono do SBT, emissora que tem o direito de transmissão dos jogos da Copa América, disputada por equipes tecnicamente limitadas e sem o incentivo vindo das arquibancadas.
Nesse momento, os que têm mais de 50 anos lembram da Democracia Corinthiana, movimento revolucionário, criado no início da década de 80 pelos jogadores Sócrates, Casagrande, Zenon, Wladimir e outros, com a finalidade de se juntar aos que reivindicavam eleições diretas ao regime ditatorial.
Essa mesma ditadura (1964-1985) adotou a censura a todos os meios de comunicação a partir de 1971, proibindo a divulgação de notícias sobre uma epidemia de meningite, tratada como questão de segurança nacional, em nome do “milagre econômico”, justificavam os militares. A doença, que causou 1.600 óbitos e contaminou mais de 70 mil pessoas, pegou de surpresa – a população. em geral, ignorava a tragédia que se abateu sobre seu país – médicos, sanitaristas e a precária rede hospitalar. O “Emílio Ribas”, único hospital de São Paulo para doenças contagiosas, com 300 leitos, chegou a receber 1.200 pacientes.
Em 1974, no governo de Ernesto Geisel (1907-1996), a verdade veio a tona com o cancelamento dos Jogos Pan-Americanos, programados para o ano seguinte em São Paulo. Em 1975, a epidemia foi controlada graças a compra de 80 milhões de doses da vacina fabricada pelo Instituto Pasteur, na França. A cobertura vacinal atingiu a quase 90% da população.
*Carlos Alberto González Passos é jornalista profissional aposentado. Atuou, por mais de 40 anos, nos jornais “Estadão” e “A Tarde”, revista Placar e Agência Estado. Foi coordenador de Jornalismo da Prefeitura de Salvador nas gestões de Antônio Imbassahy, Lídice da Matta, Fernando José e João Henrique. Ocupou a diretoria e o Conselho Fiscal do Sinjorba.