Quão grave é a discriminação religiosa no Brasil? Maria Luziene Almeida, 69, conta a própria história para responder essa questão. Mãe de santo no candomblé, ela tem um terreiro há mais de quatro décadas em Eunápolis, Bahia. De uns tempos para cá, a convivência com a vizinhança começou a degringolar.
Segundo ela, às vezes apareciam membros de uma Igreja Universal próxima para jogar sal, elemento de simbolismo bíblico, no imóvel.
Num domingo de 2022, o casal estava na sala assistindo ao reality The Voice quando passou um carro de som tocando um hino evangélico às alturas. Ele saiu na área e avistou a multidão de fiéis se aproximando, de uma Assembleia de Deus. Tudo bem, a rua é pública.
Só que a trupe parou na frente da casa deles e, de acordo com Luziene, começou a dizer que Jesus Cristo a repreenderia. Vídeos que circulam na internet confirmam a concentração de pessoas orando no local.
A mãe de santo diz que uma briga generalizada se instalou na sequência, com direito a um pastor dando uma gravata em sua neta.
No dia seguinte, novo ataque ao terreiro. Vandalizaram um assentamento de Exu, que é um espaço dedicado ao orixá.
Ela conta que voltou a se sentir discriminada ao tentar prestar queixa na delegacia. O escrivão teria lhe dito que o ocorrido “era uma coisinha de nada”. Um delegado, afirma, recusou-se a atendê-la por ser ele mesmo evangélico. No fim, um pastor e um frequentador do terreiro acabaram indiciados por agressão.
Quão isolados são relatos como o de Luziene?
Vejamos algumas ocorrências colhidas nos últimos dois anos e publicadas no 2º Relatório sobre Intolerância Religiosa, divulgado nesta semana.
Um terreiro de candomblé é alvo de bombas, e seu sacerdote escuta de vizinhos: “Macumbeiro veado do diabo”.
Traficantes evangelizados ordenam o fechamento de terreiros em dez bairros.
Acompanhada de pessoas armadas, proprietária ameaça inquilina candomblecista. A dona do imóvel solta frases como “piranhas servas do diabo” e diz que vai ungir a moradora e seus dois filhos.
Um padre se recusa a batizar o bebê de um casal do candomblé e diz: “Estou aqui para a igreja não virar bagunça”.
Uma muçulmana conta que foi num posto de vacinação contra a Covid-19 em Manaus. Usava lenço e máscara com as cores da bandeira palestina. Uma enfermeira disse temer que ela detonasse uma bomba ali.
Pastor pede em culto um “massacre aos judeus”.
Idosa e filha adolescente, de cultos tradicionais indígenas, são acusadas de fazer macumba para adoecer um homem. São levadas para escola da aldeia, forçadas a ficar de cócoras, têm os cabelos cortados e recebem ameaças. Tudo para confessar um suposto feitiço.
O preconceito está no discurso de autoridades.
O prefeito de Rio das Ostras (RJ), Marcelino Borba (PV), ao tomar posse, evoca o estereótipo do judeu ganancioso ao falar da gestão passada. “São piores do que judeu, assim! Os caras não liberam nada. Tudo para eles, querem dinheiro.”
Já Washington Reis (MDB), hoje secretário de Transportes do Rio, começou seu segundo mandato como prefeito de Duque de Caxias (RJ) dizendo que seus adversários “foram na esquina da macumba” para tentar derrotá-lo.
O agrupamento de relatos foi feito a partir de dados apresentados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, pelo Disque 100 do governo federal e pelo Instituto de Segurança Pública. A prevalência de denúncias contra quem professa uma fé afro-brasileira não eclipsa a crescente repercussão de casos ligados a outros grupos minoritários, como muçulmanos e judeus.
O Gracias (Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos), da USP, lançou no ano passado o 1º Relatório de Islamofobia no Brasil. Coordenadora da pesquisa, Francirosy Campos Barbosa diz que a hostilidade recai sobretudo nas mulheres que usam lenço, adereço comum no Islã. “São as que mais sofrem agressões, até perda de emprego e violência física.”
Os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos EUA hiperbolizaram o preconceito contra a religião que, em algumas décadas, deve superar o cristianismo em quantidade de adeptos no mundo.
Mesmo a imprensa ajuda a espessar a intolerância, diz Barbosa. Exemplo: “Quando teve a posse do Lula, a Janja não deu a mão ao embaixador [do Irã]. Falaram que era um protesto dela. Na verdade, é protocolo”.
E onde ficam os evangélicos nesta história? Quem discrimina pode vir de várias religiões, ou mesmo nenhuma, mas o grosso das ocorrências é associado a fiéis desse ramo cristão. E eles próprios, estariam também na mira de intolerantes?
O pastor batista Yago Martins, do canal Dois Dedos de Teologia, acha que sim. Ele não nega que a intensidade dos ataques contra crentes é menor do que contra outras categorias religiosas, principalmente as de matriz africana.
“Evangélicos também são alvo, e o motivo pelo qual isso causa estranhamento é que alguns setores estão acostumados a pensar que só podem sofrer intolerância grupos com menos poder social”, diz.
Ele cita colegas que escondem sua cristandade de empregadores. “Um professor universitário com visão cristã, por mais democrática e socialmente aceitável”, afirma, pode ser preterido no ambiente acadêmico, sobretudo da área de humanas.
Muitas vezes, discriminar crentes é aceito porque, ora, se uma parcela deles vai lá e ataca os diferentes, e são todos papagaios de um conservadorismo opressor. Algo na linha de “você foi tolhido porque é retrógrado mesmo”, diz Martins.
“E onde esse pessoal vai encontrar guarida? Geralmente na mídia alternativa ligada a grupos de extrema direita, que muitas vezes vai capitalizar esse tipo de discurso.” | FOLHAPRESS